Julius Templeman, por Orfeu

29 / maio / 2013

Nas próximas semanas, Letícia Wierzchowski apresentará, com exclusividade para o Blog da Intrínseca, alguns dos personagens de Sal, romance que será publicado em julho.

Eu esperei.
Solenemente, por meses a fio, anos inteiros, eu esperei. De peito aberto, jovem e ansioso, deixei-me ficar lá na praia, olhando o mar. Sentado na areia, o sol quente mordendo a minha pele, todo aquele verde, o azul e o branco, a praia dentro de mim  como uma música — ficava lá, esperando. De modo que não é estranho que realmente eu estivesse lá quando ele chegou.

Seu nome era Julius Templeman. Chegara de muito longe e não trazia muita coisa consigo, apenas um livro lido e relido, cuja autora — que vinha a ser Flora, minha irmã — ele procurava.

Eu estava no morro, sentado entre as sarças fazendo rabiscos no meu caderno de desenho e lembro como se fosse hoje, posso sentir no vento o cheiro amargo das algas e posso provar o contato da areia e dos pedregulhos sob meus pés descalços. Foi mesmo sem preâmbulos, uma coisa crua e aguda. Mas não doeu, foi mais como uma epifania. Como uma criança sedenta que, ao ver um copo de água, pega do copo e bebe seu conteúdo até a última gota. Água se bebe, pensa a criança, ou o instinto lhe sopra isso nos ouvidos? Não me lembro de uma voz, não me lembro de nada: apenas a revelação, franca e serena, de que era por ele — por Julius Templeman — que eu esperara durante todo aquele tempo.

Eu o amei.

Amei-o com todo o meu espírito e com cada gota do meu sangue. Amei-o no instante em que, lá na praia, ele desceu do barco de Tobias, usando um casaco pesado demais e aqueles mocassins de pelica que não venceram a caminhada na areia até a nossa casa. Amei-o no seu espanto e na sua tímida deselegância, amei-o na sua palidez e na sua corajosa solidão. Amei-o, e logo o quis, mas havia chão e havia pedras, e noites se estendiam à nossa frente como um tapete de espinhos, até que ele pudesse ser mesmo meu como eu já era dele desde o princípio.

Julius… Tinha os olhos azuis iguais ao mar de La Duiva em fevereiro, e todo ele parecia tão expectante como uma criança numa dessas quermesses interioranas, crente na promessa de que seus desejos seriam todos satisfeitos. Julius não imaginava como a sua vida estava por mudar. E assim, inocente do próprio fado, ele caminhou desajeitadamente pela praia sem nunca erguer os olhos para as pedras, para a face do morro verde e cinzento onde eu estava sentado. Eu, Orfeu, o destino final daquela sua tresloucada viagem.

Leticia Wierzchowski assina uma coluna semanal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

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