Ivan, por Cecília

Por Leticia Wierzchowski

17 / maio / 2013

Nas próximas semanas, Letícia Wierzchowski apresentará, com exclusividade para o Blog da Intrínseca, alguns dos personagens de “Sal”, romance que será publicado em julho.

Uma mulher pode amar um único homem durante a vida inteira, amá-lo do começo ao fim dos seus dias e, no entanto, perdê-lo na esteira dos anos; perder-se dele, lenta e silenciosamente como a areia escoa num daqueles relógios antigos. Homem e mulher na mesma casa, anos a fio, entre fraldas e mamadeiras, risos e choros, tombos e arrependimentos, noites de tormenta, naufrágios, sopa quente em tigelas de porcelana, achas de lenha ardendo no fogão, o pó acumulando-se traiçoeiramente entre os livros na estante, o vento lá fora… Bem, essas são as armadilhas de um casamento. Na maioria das vezes, não há sangue, nem gritos, nem feridas. Apenas o tempo gotejando como uma velha torneira com o reparo gasto, e um dia você está assim de água até o pescoço.

Isso aconteceu aqui em La Duiva, com Ivan e comigo… Nossas misérias cotidianas e nossas pequenas alegrias, tudo junto, misturando-se num amálgama de memórias. Eu, às vezes, quase nem sabia mais amá-lo. Mas não há nada como a morte para nos chamar à razão — quando Ivan se foi repentinamente naquela manhã lá no píer, um vazio se abriu dentro de mim. Como se alguma coisa me comesse por dentro, de repente me vi roída, rota, vazia. O amor sabe ser silencioso, ora se sabe.

Claro, houve um tempo em que eu ardia por Ivan. Éramos jovens e sempre parecia verão, porque não ficou em minha memória nada que não as nossas tardes sob o sol, os beijos entre as pedras do molhe, noites apinhadas de estrelas… Doña vigiava-nos de perto, tão de perto que nos encontrou aos beijos, e as coisas se precipitaram então. Não creio que deva reclamar daquele tempo, já que Ivan e eu nos casamos exatamente como queríamos. Ah, as primeiras noites no nosso quarto, o calor de Ivan junto a mim…

No entanto, os anos passaram. Os anos passaram sobre nós como as ondas do Atlântico lá na praia. Enchemos esta casa de filhos, fomos felizes e infelizes, um pouco de cada. Ivan, aquele rapaz alto e circunspecto de olhos verdes, cujos sorrisos embalavam meu sono, foi ficando parecido com o pai, don Evandro. Ah, que medo eu tinha ao acordar pela manhã com Ivan deitado ao meu lado, exausto da última tormenta, e ver que o tempo avançara nas trincheiras do rosto do meu marido, transformando uma coisa em outra, a boca rosada do rapaz que eu adorava, a boca como um morango em dezembro, suculenta e linda, mutando-se naquela outra boca, rasgada, dura, a amarga boca do meu sogro — o tempo é como uma criança travessa que desbasta os canteiros de um jardim quando apenas nos afastamos um pouco em busca de mais gelo para a limonada.

É claro, não foi apenas Ivan quem mudou. Um dia, dei por mim na frente do espelho do corredor, vasculhando meus próprios traços, e não encontrei mais ali a menina loira que cantarolava pelos corredores de La Duiva… Mas a vida é assim, ela joga conosco. Casamos com o homem x ou a moça y mas, na verdade, o nosso matrimônio verdadeiro, o único do qual não nos podemos apartar de maneira nenhuma, é com o tempo.

Está certo, eu estou fugindo do assunto — não estou? Como era Ivan realmente? Ah, ele era lindo, inóspito e dourado como um verão aqui na costa. Ele deixava um rastro de verde em todas as coisas, era como uma gema preciosa, uma planta, um poço muito fundo — tinha um silêncio cheio de segredos. Eu pulei naquele poço e fui até o fundo das coisas, até o âmago. Às vezes, podia ser extenuante, mas valia a pena. Agora que Ivan se foi, nada mais será como antes. Até a casa vem perdendo o viço, enquanto eu fico aqui na sala tecendo o meu interminável tapete de lembranças.

Leticia Wierzchowski assina uma coluna semanal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

VER TODAS AS COLUNAS

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *