A história dos caroços, por Leticia Wierzchowski

8 / fevereiro / 2013

Coluna publicada no jornal Zero Hora, em 7 de fevereiro de 2013.

Quando minhas irmãs e eu éramos crianças, o pai fazia questão de que comêssemos frutas. Muitas. Ele tinha o hábito de trazer caixas de fruta para casa, enchendo a geladeira de uvas, pêssegos, mangas e ameixas. Eu sempre gostei de frutas, mas era difícil dar cabo das quantidades que o pai trazia. No verão, quando a família ia para o litoral, e o pai passava a semana trabalhando na cidade, ele chegava na praia com o carro cheio de frutas, e a nossa obrigação era comer aquilo até a próxima sexta-feira. Nunca dávamos conta… Até que o pai criou o subterfúgio de pagar por caroços e sementes. Talvez hoje, neste mundo asséptico onde o politicamente correto tornou tudo meio chato, alguns torçam o nariz para a ideia do pai – mas garanto que, nos anos 80, foi uma sacada genial.

Naquele verão, caroços e sementes passaram a valer grana. Éramos várias crianças – eu e minhas duas irmãs, mais os dois filhos do meu tio que passavam as férias conosco. O pai chamou-nos e, muito sério, informou a cotação vigente. Era mais ou menos assim: 20 centavos por caroço de pêssego, 15 centavos por caroço de ameixa. Sementes de uva valiam 5 centavos. A gente deveria comer as frutas durante a semana, guardando os caroços para que o pai nos pagasse proporcionalmente na sexta-feira. Nunca comemos tantas frutas na vida! Os caroços viraram a moeda oficial daquele verão: um picolé se comprava com três caroços de pêssego, um sorvete de duas bolas necessitava cinco pêssegos, dez ameixas e um cacho de uvas. E a gente dê-lhe comer. Meu primo economizava caroços para comprar revistinhas, minha irmã torrava tudo em picolés. Na sexta, o pai chegava e, coitado, antes de se estirar na cadeira da varanda, tinha que sentar à mesa da sala e fazer a contabilidade dos caroços (e os caroços eram guardados em sacos, e ali ficavam fermentando durante dias e dias, no calor do verão). Contar aquilo era um nojo e uma trabalheira, mas o pai seguia firme. E cada vez trazia mais frutas para casa. Até que um dia a minha prima resolveu juntar sementes para comprar alguma coisa grande, acho que era uma boneca. Era uma guria obstinada, e naquela semana comeu ameixas dia e noite, até que amanheceu na sexta-feira com febre, vômitos e diarréia. A mãe ficou fula. Fruta demais soltava o intestino, foi o que ela disse para o pai quando ele chegou naquela tarde com suas ameixas e pêssegos. Diante do estado da sobrinha, o pai capitulou. Recebemos o nosso último pagamento consternados: acabava-se ali a mina de ouro. Eu sigo adorando frutas; mas, como naquele verão, nunca mais.

Leticia Wierzchowski assina uma coluna quinzenal no blog da Intrínseca.
Nascida em Porto Alegre, Leticia estreou na literatura aos 26 anos e publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. Seu romance mais conhecido é A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.

Seu próximo livro, ainda sem título definido, será publicado em junho pela Intrínseca.

Comentários

3 Respostas para “A história dos caroços, por Leticia Wierzchowski

  1. Aposto que se meus pais tivessem feito o mesmo que o seu, eu seria uma pessoa muito mais saudável. Ideia muito inteligente essa (criancinhas capitalistas que vocês eram, ein!).

  2. Que delícia de história, adoro a Leticia. Super ansioso pro lançamento do novo livro.

  3. Que ideia maravilhosa do teu pai, quero parabeniza-lo e a ti também pelos teus trabalhos.

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