Flora

Escrever é uma espécie de poder sobrenatural. Como ver os mortos ou fazer levitar os móveis da sala. Tenho pensado muito nisso. Tenho pensado nisso depois que as coisas começaram a acontecer fora do meu livro do mesmo modo que ocorriam lá dentro.

Cecília

Cecília estava ali. Remexia o tacho de doce, vira pra cá, vira pra lá, a colher de pau dançando por entre a massa vermelho-escura. Ela sentia as mãos arderem, o calor subindo do tacho como um pequeno incêndio só dela, enquanto lá fora a tarde seguia na sua esteira azul, as ondas estourando na praia. Mas a praia não era para ela. Doña sempre dizia isso.

Ivan

O farol estava lá desde que eu nasci. Encarapitado na ponta pedregosa da praia onde o mar fazia uma curva suave. As pedras se espalhavam ao seu redor como oferendas que alguém tivesse depositado ali num ontem qualquer. Oferendas cobertas de algas, abrigando colônias de mexilhões e minúsculas conchas rosadas que eu juntava, secava ao sol e guardava numa caixa apenas por guardar. Coisa de criança.

Doña

Mas vamos falar da velha moura. Você sempre disse, mamãe, que ela era uma espécie de víbora. Uma coisa pequena e escorregadia, silenciosa e vil. Andando pela casa como uma sombra, pescando evidências. A vida para ela era uma espécie de complô.

Ernest

O meu pai trabalhava no farol com mais um ajudante. O Ernest. Ele era quase parte da família, pelo menos eu pensava assim. Era alto, muito magro, observador e perspicaz ao modo dos pescadores. Meu pai ria muito dele e ralhava muito com ele também.
Tinham uma relação masculina, de trabalho, mas dava para dizer que, do jeito deles, os dois eram amigos.

Lucas

Lucas cresceu rápido. Era uma espécie de cópia de Ivan. Cecília amava o menino com o mesmo amor com que amara o marido desde que o vira pela primeira vez, um amor humilde e maravilhado que agora vinha acrescido da sensação um pouco angustiante da responsabilidade, da vontade desesperada de proteger aquela criança de todos os males do mundo, até dos males já mortos e enterrados.

Eva

Se ela não existisse de verdade, com aquele seu petulante jeito de me olhar meio de lado, os olhos brilhando de esguelha, com os seus sorrisos inesperados, misteriosos, como se sempre estivesse de posse de algum segredo vergonhoso sobre mim – bem, se Eva não existisse, eu jamais a teria inventado... Ela é, na minha vida, como um pequeno demônio de estimação.
Com os seus olhos híbridos, iguais aos de mamãe, mas ao mesmo tempo tão diferentes. Chamuscam ao meio-dia.

Julieta

Todo mundo diz que ela é louca
a louca da casa
boca sem voz
mão sem movimento
Usa o mesmo vestido azul
e não sabe que é azul
Mas tem um momento dentro do
mundo
que ela sabe, ela manda,
ela conta a sua história.
Ela fica igual aos outros.
Seu nome é trágico, ou não.

Orfeu

O que sei é que somos trágicos. Os deuses escolheram assim. Somos todos uma brincadeira deles, marionetes que envelhecem rápido demais, uma experienciazinha carnal – de modo que não lhes interessa a parcimônia: criam uns num caldo de fúria e outros na doçura total. Eu sou fruto da fúria. Sou o filho da árvore de sangue que Lorca cantou. Eu tenho o coração oprimido. Ou melhor, tinha. Até o dia em que as coisas todas se encaixaram.

Tiberius

Ele gostava das constelações
Taurus
Andrômeda
Órion
Aquarius
ele gostava de estrelas
Aldebaran
Sirius
Pollux
ele gostava de pessoas
Cecília
Orfeu
Flora
era um menino loiro e lindo
que um dia cresceu
carregava o mundo nas costas
tinha joelhos fortes
e um coração honesto

Julius Templeman

30 anos, professor de literatura
olhos azuis, Julius
encurvado de carregar livros
e pálido como um herói romântico
se emociona com Borges
se espanta com Cortázar
chora com Verlaine
um mestrado, um doutorado
um pós-doutorado
palavras
um prato, uma xícara
uma cama fria
National Portrait Gallery
ele gosta de pintura
tantas noites acordado lendo livros
ele sabe o que é ler
escrever, o que seria?


Compartilhe