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Como rir (sem culpa) de uma neurótica

1 / setembro / 2017

Cheio de referências pop e eruditas, novo romance da roteirista americana Maria Semple acompanha o dia de uma animadora frustrada que decide mudar a maneira de conduzir a própria vida.

Por Mariana Filgueiras*

Ilustração: Ana Franco

“Uma mãe gambá com sua fileira de filhotes chafurda em uma lixeira, mete a cabeça pontuda em uma embalagem de creme de leite, baixa sua cauda e não se deixa assustar”, diz um trecho do poema “A hora do gambá”, que Robert Lowell, um dos mais importantes poetas norte-americanos do século XX, escreveu para Elizabeth Bishop.

Numa das cenas do romance Hoje vai ser diferente, da escritora Maria Semple (roteirista de sucessos da televisão americana, como Saturday Night Live, Mad About You e Arrested Development), a narradora, Eleanor Flood, está em um café tendo aula particular de poesia. É uma estratégia para aprender a escrever de forma mais concisa, já que ela tem o desafio de colocar no papel uma graphic novel sobre a própria vida. Naquela manhã, entre frutas e torradas com bacon, o professor analisa os melancólicos versos de Lowell, que Eleanor não faz ideia que dizem tanto sobre si mesma.

É uma personagem que chafurda na lixeira dos problemas da classe média americana: animadora de sucesso em Nova York e Seattle, onde mora com o marido, Joe, um cirurgião bem-sucedido que guarda um segredo durante boa parte da trama, e o filho, Timby, de oito anos, que muitas vezes parece mais adulto do que ela, Eleanor vive atarantada por milhões de tarefas. Ora se sente culpada por não dar atenção ao menino, que começa a inventar doenças para chamar sua atenção; ora ao marido, com quem já não leva uma vida sexual muito animada há tempos. Culpa que a deixa irritadiça até com uma das únicas amigas que têm:

Faz dez anos que não consigo me livrar dela. É a amiga de quem não gosto, é a amiga que não sei o que faz da vida porque eu estava entorpecida demais para perguntar da primeira vez e, a essa altura, seria grosseiro perguntar, a amiga com quem não sei ser má para fazê-la entender o recado, a amiga para quem vivo dizendo não, não, não, mas que ainda assim me persegue. Ela parece o mal de Parkinson: não tem cura, só dá para controlar os sintomas.

Eleanor se inscreve em cursos de meditação e falta as aulas, compra roupas escondida e não usa, sente falta da atmosfera “interessante” de Nova York, mas não consegue sustentar um compromisso social em Seattle sem deixar escapar comentários preconceituosos.  

Apesar disso, reage a muitas frustrações como uma boa personagem de sitcom dessas que Semple está habituada a criar: com tiradas tão neuróticas quanto bem-humoradas. Seu livro anterior, o elogiado Cadê você, Bernadette?, tem a protagonista construída sobre as mesmas bases tragicômicas — uma mistura de Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, com Bridget Jones, de Helen Fielding.

Crédito: Ana Franco

Numa das passagens mais engraçadas do romance, Eleanor cita as “toalhas molhadas na cama” deixadas pelo marido e seu hábito peculiar de guardar os pãezinhos que sobram do couvert dos restaurantes dentro da própria meia, levá-los para casa “para não desperdiçar” e esquecê-los dentro da peça de roupa por dias. E enumera também suas manias que mais irritam Joe, como o hábito de passar fio dental deitada na cama, o de entrar no chuveiro com o cachorro para dar banho nele, e o mais curioso: o de não pegar a pipoca do pacote com as mãos, mas “encostando com a ponta da língua e pegando as que grudam”.

Como a gambá do poema, Eleanor chafurda, mas sai da lixeira com a cara enfiada na lata de creme de leite.

“Se eu for obrigada a ser sincera, foi assim que deixei o mundo na semana passada: pior, pior, melhor, pior, igual, pior, igual”, lista ela, antes de tomar a decisão que dispara o gatilho da trama, fazendo todos os acontecimentos se desenrolarem.

É quando Eleanor decide que não dá mais para levar a vida do mesmo jeito. Se fosse brasileira, poderia cantarolar um Roberto Carlos: “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente…” Mas acaba fazendo o statement que dá título ao livro:

Hoje vai ser diferente. Hoje estarei presente. Hoje vou olhar no fundo dos olhos de todas as pessoas com quem conversar e vou ouvir com atenção. Hoje vou brincar com Timby. (…) Não vou falar sobre dinheiro. Hoje vou buscar a simplicidade. Vou exibir uma expressão relaxada e um sorriso. Hoje vou irradiar calma. Hoje vou dar o melhor de mim, vou ser a pessoa que sou capaz de ser.

É uma virada que aconteceu na própria vida da autora, que não esconde a proximidade entre suas protagonistas e si mesma. Maria Semple já disse em entrevistas que, se em Cadê você, Bernadette? ela trabalhou com uma versão idealizada de si, em Hoje vai ser diferente quis explorar a versão realista. “Eu carrego muita culpa por ter sido neurótica na frente da minha filha. Metade das falas de Timby são frases que minha filha disse para mim. A personagem não é má ou sarcástica, ela apenas é verdadeira”, disse a autora ao jornal The Guardian, quando o livro foi lançado nos Estados Unidos.

Para contar a história da animadora de meia-idade Eleanor Flood — que será vivida por Julia Roberts na série da HBO inspirada no livro —, a autora usa um recurso clássico de narrativa: a ação toda se passa em apenas um dia. Assim como acontece em Ulisses, de James Joyce, e na já citada Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf.

No caso de Hoje vai ser diferente, no entanto, a solução de contar as 24 horas na vida de uma personagem do universo pop americano ajuda a acomodar, sem muitos sobressaltos, a colagem de referências que  enriquecem a  trama. E que vão muito além da poesia moderna de Lowell e Bishop, incluindo outros clássicos como as canções do Radiohead, os bordões dos Simpsons, o traço de Robert Crumb ou o clima indie de Daniel Clowes.

 

Mariana Filgueiras é jornalista cultural e mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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