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A vida não é filme

6 / setembro / 2017

Por Elisa Menezes*


Devemos tomar o cuidado de não julgar nossos relacionamentos pelas expectativas que nos foram impostas por um veículo estético que costuma estar equivocado. A culpa é da arte, e não da vida.

Essa é uma das ideias centrais do novo livro do escritor e filósofo Alain de Botton. Em O curso do amor, ele é o primeiro a reconhecer que não se trata de tarefa fácil, dado o bombardeio romântico a que somos submetidos há gerações. Não são poucas as histórias que terminam com a celebração de um casamento, seja nos contos de fada — “e viveram felizes para sempre” —, seja nas novelas da TV. É como se a humanidade inteira fosse embalada por Fábio Jr., que dia após dia repete em nossos ouvidos: “Carne e unha, alma gêmea, bate coração. As metades da laranja, dois amantes, dois irmãos. Duas forças que se atraem, sonho lindo de viver.”

Para dar conta da complexidade do relacionamento amoroso, Botton faz uso da mesma arma com que Shakespeare disseminou o ideal do amor romântico: a ficção. Romeu e Julieta saem de cena e entram Rabih e Kirsten. A tragédia dos jovens amantes que pertencem a famílias inimigas dá lugar aos desafios da convivência cotidiana entre duas pessoas que decidiram viver juntas a grande, difícil, surpreendente, tediosa e por vezes insana experiência do casamento.

Um casamento não começa com o pedido, nem no primeiro encontro. Começa muito antes, com o nascimento da ideia de amor, e, sendo mais exato, com o sonho de uma alma gêmea.

É por isso que o autor inicia sua história com a primeira paixão de Rabih, aos 15 anos, aquela que moldará sua compreensão do amor por décadas. O sentimento não revelado (nem correspondido), alimentado por poucos elementos concretos e muita idealização, deixará uma marca permanente em Rabih, que “continuará acreditando na possibilidade de dois seres humanos se entenderem e sentirem empatia de forma rápida e incondicional, e na chance de um fim definitivo para a solidão”.

Como nem toda produção artística é romântica, vale lembrar que nos anos 1980 os Paralamas do Sucesso já alertavam, em vão: “A vida não é filme, você não entendeu, de todos os seus sonhos não sobrou nenhum. Ninguém foi ao seu quarto quando escureceu, e só você não viu, não era filme algum.”

É justamente aquilo que costuma ficar de fora dos filmes — e que constitui a essência do casamento — que Botton está interessado em mostrar. Trata-se da versão estendida da história de Rabih e Kirsten, na qual assistimos a expectativas e desentendimentos, fantasias e frustrações, solidão e companheirismo, infantilidade e amadurecimento.

São os episódios mais corriqueiros que geram identificação imediata, como o sentimento de injustiça diante da divisão de tarefas domésticas e a mágoa acumulada pelo cônjuge não ser capaz de ler todos os nossos sinais (para nós, evidentes; para eles, dúbios). Compartilhamos as angústias do casal fictício, pois são universais.

Ao esmiuçar o casamento de Rabih e Kirsten, Botton demonstra como as experiências pessoais, a infância e a relação com os pais estão na essência de muitas atitudes que tomamos em nossos relacionamentos amorosos. Transferimos aos parceiros as expectativas que tínhamos em relação aos nossos progenitores, aqueles seres que por anos se dedicaram a cuidar, limpar, alimentar, ensinar e (tentar) compreender cada desejo dos filhos. “Aceitar os riscos dessa transferência”, diz Botton, “significa dar prioridade à empatia e à compreensão em detrimento da irritação e do julgamento”. E completa: “Duas pessoas podem vir a entender que os súbitos acessos de ansiedade ou hostilidade podem nem sempre ter sido causados diretamente por elas — e, portanto, nem sempre deveriam suscitar fúria ou orgulho ferido.”

O autor entremeia a história do casal com comentários e reflexões — como os trechos em itálico deste texto e as aspas do parágrafo anterior — pautados na psicologia, na filosofia e na história, criando assim uma narrativa que mescla ensaio e ficção.

O nascimento dos filhos é terreno fértil para o surgimento de novos desafios, e é alvo também da franqueza certeira de Botton, que aponta os sentimentos ambíguos que podemos nutrir em relação àqueles que mais amamos. “Tudo é incrível — da primeira vez”, diz o autor, referindo-se ao deleite do casal diante da novidade de cada ínfima ação de seus filhos, como engolir um pedaço de banana ou segurar um copo. “Nem Kirsten nem Rabih jamais conheceram essa mistura de amor e tédio”, conclui.

A chegada das crianças não apenas modifica a dinâmica do casal como impõe a Kirsten e Rabih papéis até então desconhecidos: mãe e pai. Naturalmente, a intimidade entre os dois é afetada, o desejo muitas vezes fica soterrado pelas novas responsabilidades; a culpa passa a ser uma espécie de bumerangue que marido e mulher jogam um para o outro. Novamente, a crença no amor incondicional nos leva a ter os piores tipos de comportamento justamente com quem amamos.

O nível de exigência que infligimos ao parceiro e a busca fantasiosa por um casamento perfeito — em vez de satisfatório — são mais uma cortesia do ideal do amor romântico. E não adianta pensar que o problema está no outro: a perfeição simplesmente não existe, é difícil que uma paixão resista ao cotidiano de louça suja, estresse no trabalho ou aperto financeiro. Mesmo a pessoa mais interessante, autêntica, compreensiva e gentil é incapaz de passar no teste da vida a dois sem revelar manias irritantes, fetiches esquisitos ou falhas de caráter. Já dizia Caetano Veloso: “De perto, ninguém é normal.”

Mais do que somente narrar os altos e baixos de uma relação, O curso do amor oferece um olhar empático a cada um dos cônjuges. Ao investigar as motivações, anseios e inseguranças por trás de atitudes que soam incompreensíveis no dia a dia, o autor nos convida a refletir e a perdoar — a nós mesmos e ao outro. Apesar de todos os efeitos físicos e emocionais que provoca, o amor, afinal, não é mágica, e sim mais uma habilidade que podemos (e devemos) desenvolver. Ao final, Kirsten e Rabih aprendem a apreciar as pequenas doses de felicidade e sentem que juntos são muito mais fortes e capazes de enfrentar qualquer desafio.

 

Elisa Menezes é jornalista, editora e curadora do Garimpo Clube do Livro.

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