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Por que o livro de Mariana Enriquez dá palpitações no leitor

24 / julho / 2017

Por Mariana Filgueiras*

As coisas que perdemos no fogo transforma personagens comuns e temas contemporâneos em protagonistas de contos magnéticos e sinistros

Num dos contos de As coisas que perdemos no fogo, três jovens amigas se divertem dentro da caçamba sacolejante de um furgão em alta velocidade. “Nós gritávamos e caíamos uma em cima da outra; era melhor que montanha-russa e que álcool. Esparramadas no escuro, sentíamos que cada pancada na cabeça podia ser a última e, às vezes, quando o namorado de Andrea tinha que parar porque algum sinal vermelho o detinha, nos procurávamos no escuro para comprovar se ainda estávamos vivas. E ríamos aos gritos, suadas, às vezes ensanguentadas. O interior do furgão cheirava a estômagos vazios e cebola, às vezes também ao xampu de maçã que compartilhávamos.”

É como nos sentimos ao ler o primeiro livro publicado no Brasil da escritora argentina Mariana Enriquez: esparramados no escuro, suando de nervoso, dando cabeçadas no teto de um carro a toda a velocidade.

O que logo chama a atenção é como a força de sua literatura é física. O livro nos domina, como se o leitor fosse subitamente agarrado pelos calcanhares, depois olhasse para o chão e não visse nada. Impossível atravessar as 192 páginas sem ouvir uma porta ranger, sem checar possíveis feridas nas pontas dos dedos ou sem sentir palpitações no peito. Em algum momento, vai acontecer, é só uma questão de tempo.

A autora usa com habilidade temas muito discutidos atualmente, como o bullying, o crack, os desaparecidos políticos, a violência doméstica, o gaslighting e a crise econômica (caso do conto “Os anos intoxicados”, citado acima), para criar um ambiente magnético e sinistro em seus contos de terror. Os personagens não são monstruosos ou irreais: são pessoas com as quais cruzamos na vizinhança, no pátio da escola, na sala de espera do dentista. A banalidade que introduz as histórias as torna tão factíveis quanto surpreendentes.

E Mariana o faz com o cuidado de não deixar os personagens presos a estigmas ou a lugares-comuns. Num meio-termo bem imaginado entre o realismo e a fantasia, a autora constrói sobre os dramas citadinos um mundo à parte, cheio de reflexão existencial e crítica política.

No conto “O menino sujo”, por exemplo, o terror vivido pela narradora se revela mais na culpa por não ter ajudado uma criança de rua do que na descrição do ambiente repugnante em que vivia ou na própria ação que culminaria no sumiço do menino. “Tive vontade de sacudi-lo e, em seguida, me envergonhei. Ele precisava de ajuda; eu não tinha por que saciar minha curiosidade mórbida. E, mesmo assim, algo no silêncio dele me irritava. Queria que fosse um menino amável e encantador, não aquele áspero e sujo que comia o arroz com frango lentamente, saboreando cada garfada, e arrotava depois de terminar seu copo de Coca-Cola.”

São 12 histórias, numa edição que cresce pouco a pouco em dramaticidade e guarda as mais violentas para o final. A última dá nome ao livro, “As coisas que perdemos no fogo”, e fala sobre mulheres que ateiam chamas ao próprio corpo em protesto coletivo. “Quando de fato as mulheres começaram a se queimar, ninguém acreditou nelas. (…) Achavam que elas estavam protegendo seus homens, que ainda tinham medo deles, que estavam traumatizadas e não podiam dizer a verdade; foi difícil admitir a existência das fogueiras. Mesmo agora, que havia uma fogueira por semana, ninguém sabia o que dizer nem como detê-las, exceto com o de sempre: controles, polícia, vigilância.”

Há uma característica comum a todos os contos: a narração é sempre de mulheres adolescentes ou adultas, o que a autora garante ser mero acaso, um fio condutor espontâneo das narrativas. Pista já presente na epígrafe do livro, tirada do romance O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë: “Queria ser de novo uma menina, meio selvagem e durona, e livre.” Os textos de personagens mais jovens fazem lembrar a delicada tensão de As virgens suicidas (romance de Jeffrey Eugenides adaptado para o cinema por Sofia Coppola em 1999) e os primeiros textos de Stephen King, principal referência literária da autora, principalmente Carrie, a estranha (também levado ao cinema, dessa vez por Brian de Palma, em 1976).

Editora do jornal argentino Página/12, e com textos publicados pela revista The New Yorker, Mariana mostra na sua ficção uma das melhores heranças do jornalismo: o talento para contar boas histórias.

=> Leia um trecho de As coisas que perdemos no fogo

 

Mariana Filgueiras é jornalista cultural e mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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