Bastidores

Procura-se uma história que saiba que eu existo

28 / junho / 2017

Por Helena Mayrink*

Nomi e Amanita, personagens da série Sense8

Costumo falar que minha mãe me criou à base de filmes românticos. Desde criança, esperava um conto de fadas, um encontro de almas, uma declaração nível Um lugar chamado Notting Hill pra chamar de minha. Ah, e um príncipe encantado, claro, porque ele era essencial para o meu plano de final feliz.

O grande problema era que uma, duas, três, dez vezes, a mini-eu se viu seguindo um mantra: “Ele só não é o garoto certo, está tudo bem.” Quanto mais eu crescia, porém, mais percebia que meu sentimento ao pensar em príncipes encantados não era o de borboletas no estômago, mas uma já constante gastrite nervosa. Não era bem a coisa mais apaixonante de todas, desconfio.

Por anos, silenciei um grito que ecoava na garganta e que eu não tinha coragem de jogar para o universo. Aos 16, resolvi encarar uma possibilidade avassaladora: e se eu estivesse procurando no lugar errado? Toda a ampla filmografia de comédias românticas que mamãe me apresentou não me prepararam para isso, mas e se na verdade eu estivesse evitando aceitar que gostava mesmo de… princesas? Meu mundinho ditava uma base bem específica, a mocinha com o mocinho, e uma realidade além dessa parecia impensável. Até eu perceber que não era. O que eu via no cinema — ou melhor, o que eu não via — trazia à tona a verdadeira complicação: a falta de representatividade.

Quando soube que a Intrínseca publicaria Apenas uma garota, a primeira coisa que pensei foi “finalmente”. Afinal, Amanda Hardy não é só uma menina que se sentia diferente, mas nossa primeira protagonista trans. Depois de sofrer bullying apenas por tentar ser sincera consigo mesma, ela ganha uma chance de recomeçar — a hora de abraçar sua identidade e ser amada como sempre desejou. Essa era uma sinopse que me animava porque eu sabia que precisávamos dela, e, por meses, tudo em que eu conseguia pensar quando olhava os próximos lançamentos era Amanda. Então chegou junho. Junho, o mês em que o Brasil vai conhecer o romance escrito por Meredith Russo — entre tantas coisas, ativista, autora e mulher trans. Junho, o mês do orgulho LGBT.

Ainda que de uma forma bem diferente, reconheci muitos dos sentimentos da Amanda. A inadequação, a dificuldade de contar para os outros, o medo das reações, a insistência para ser respeitada como se é. Como a Amanda, me afoguei nas expectativas das outras pessoas até entender que quem eu sou é mais importante do que quem gostariam que eu fosse. E aí está parte da magia da literatura: jovens tendo a oportunidade de se reconhecer numa história, seja lá como eles são. Eu nunca saberia dizer como é ser trans, mas o que aquela obra falava para mim, muito mais do que questões de gênero, era de identidade e aceitação, sobre as relações que construímos e as dificuldades do mundo em que vivemos.

Eu lembro da primeira vez que falei “eu te amo” para uma menina. Lembro do nosso primeiro beijo e de vários outros beijos que vieram depois. Eu também lembro até hoje da primeira vez que assisti a um filme com um casal de mulheres — eu as vi, eu me vi. Se tem uma coisa que une a comunidade LGBT é a luta para sermos enxergados. E é isso que Apenas uma garota faz. Essas são as histórias que nós precisávamos que existissem, porque não há nada de errado com a nossa existência. E eu me orgulho dela todos os dias.

>> Leia um trecho de Apenas uma garota

 

Helena Mayrink é estagiária de comunicação da Intrínseca e uma quase-jornalista de formação. Ela é viciada em séries e literatura jovem, com um fraco ainda maior por histórias com personagens LGBT. Seu sonho era viver em um romance musical, mas às vezes acha que trabalhar com livros é quase isso.

Comentários

5 Respostas para “Procura-se uma história que saiba que eu existo

  1. A representatividade é fundamental para nós e para as futuras gerações, que não passem anos tentando ser o que não são, apenas pela falta de perspectiva de poderem ser gays. Eu sou escritora e pela literatura tento me representar, nos representar. Fico muito feliz que a editora abriu esse espaço, que essa onde se propague rapidamente!

  2. Parabéns, Helena! Que texto profundo e sensível!
    E essa sua mãe, hein? ❤

  3. Esse livro não é só para as pessoas que querem se assumir, mas também para todos tirarem as vendas dos olhos e percebem que todas as pessoas são igual, tem os mesmos sentimentos e merecem os mesmos respeitos… sou uma futura professora e acho essencial esse tipo de leitura, ate porque todo romance é importante e vivemos em um mundo que um casal normal é menino/menina menina/menina e menino/menino e todo relacionamento o mais importante é o amor e o respeito

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