Bastidores

Como frustrações e preconceitos podem destruir uma família

21 / fevereiro / 2017

Por Luana Freitas*

A partir da trágica história de uma menina morta, Tudo o que nunca contei revela os segredos mais bem guardados de uma família de ascendência chinesa nos Estados Unidos na década de 1970

Eu adoro trabalhar no texto dos livros, pois cada um é um mergulho ímpar em uma nova realidade e traz uma série de descobertas. O último que me deixou fascinada foi Tudo o que nunca contei, de Celeste Ng (autora também de Pequenos incêndios por toda parte). Como o título já entrega, ele é centrado em uma série de segredos que sustenta a tensa relação de uma família. Tudo é permeado de silêncios, omissões e até fingimento. Quando Lydia, a filha preferida do casal Lee, some e depois se descobre que ela está morta, o tênue equilíbrio que mantinha o véu de suposta harmonia da família se desfaz, e agora cada um empreende sua busca por respostas sobre quem realmente era a adolescente e o que poderia tê-la levado a assumir um comportamento tão perigoso que culminou na sua morte.

Mas há um detalhe importante aqui: a história se passa na década de 1970, então estamos falando de uma investigação pré-revolução da telefonia celular e outras tecnologias. Nada de Instagram, Facebook e troca de mensagens de WhatsApp para tentar descobrir qual de fato era a personalidade de Lydia e com quem ela mantinha contato. Nada de celular com GPS para rastrear seus últimos movimentos. Câmeras em ruas e lojas que pudessem registrar seu comportamento e humor? Esqueça.

Também há uma questão de suma relevância para o drama de nossos personagens: James Lee, pai de Lydia, é filho de chineses chegados ilegalmente aos Estados Unidos. Apesar de ser americano, ele carrega consigo o peso do preconceito contra asiáticos na década de 1970 e a dor de nunca se sentir integrado, aceito. São os risos e dedos apontados na rua, a promoção que não veio, a necessidade de se casar em um estado que não considere crime a união de pessoas de raças diferentes. Isso porque Marilyn, sua mulher, é branca, a típica menina americana da década de 1970, criada para ser uma boa dona de casa, esposa e mãe — lembremos que nessa época a presença da mulher no mercado de trabalho ainda não era algo comum. Só que Marilyn tem um sonho: ser independente, ter uma carreira de sucesso como médica. E ela quase chegou lá: conseguiu entrar para a faculdade, estava se dando bem nas disciplinas, mas justo quando faltava pouco para se formar ela se vê grávida.

Crédito: Kevin Day

Isso tudo faz de Lydia, a filha do meio desse casal com uma história tão conturbada, alguém que precisa encontrar estratégias para lidar com o fato de ser diferente em uma época especialmente cruel com aqueles que não se enquadravam no padrão americano de aparência — e em uma fase da vida por si só complexa: a adolescência. Como se isso não bastasse, ela se vê obrigada a compensar os pais pelas frustrações, anseios e inseguranças que cada um carrega, violentando a própria identidade na tentativa de ser quem eles desejam que ela seja.

Para mim, a grande surpresa do livro foi descobrir que ele não é exatamente um thriller: não importa tanto quem ou o que matou Lydia e logo na primeira linha o leitor já sabe que ela está morta. O interessante é acompanhar a dinâmica que compõe essa família, ver como as relações e principalmente o background cultural da época moldaram cada personagem, levando-os à ruína. Se há medo aqui, é o de se identificar com algumas dores dos personagens, já que eles sofrem visceralmente com questões que nos afligem ainda hoje, como aceitação, integração, a pressão gerada pela expectativa dos outros e, o pior, o temor de descobrir que o sonho que o mantém vivo, aquilo que se acredita determinar quem você é, não passa de ilusão, apenas faz de você um ridículo.

*Luana Freitas é editora assistente de ficção e não ficção estrangeiras. Estuda tradução e até hoje se espanta com o universo de descobertas que faz ao trabalhar com livros.

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