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Leia um trecho de Matéria escura, de Blake Crouch

27 / janeiro / 2017

Obra do autor da trilogia Wayward Pines chega às livrarias em 20 de fevereiro

Você é feliz com a vida que tem?

Essas são as últimas palavras que Jason Dessen ouve antes de acordar num laboratório, preso a uma maca.  Raptado por um homem mascarado, Jason é levado para uma usina abandonada e deixado inconsciente. Quando acorda, um estranho sorri para ele, dizendo: “Bem-vindo de volta, amigo.”

Neste novo mundo, Jason leva outra vida. Sua esposa não é sua esposa, seu filho nunca nasceu e, em vez de professor numa universidade mediana, ele é um gênio da física quântica que conseguiu um feito inimaginável. Algo impossível. Será que é este seu mundo, e o outro é apenas um sonho? E, se esta não for a vida que ele sempre levou, como voltar para sua família e tudo que ele conhece por realidade?

Com ritmo veloz e muita ação, Matéria escura é uma criação de Blake Crouch, também autor da trilogia Wayward Pines, que deu origem à série de TV exibida pela FOX.  Marcante e intimista, seus múltiplos cenários compõem uma história que aborda questões profundamente humanas, como identidade, o peso das escolhas e até onde vamos para recuperar a vida com que sonhamos.

 

Leia um trecho de Matéria escura:
Capítulo Um

Adoro as noites de quinta-feira.

Parecem suspensas no tempo.

É uma tradição nossa, só nós três: a noite em família.

Meu filho, Charlie, está sentado à mesa desenhando num bloco grande. O garoto tem quase quinze anos. Cresceu cinco centímetros nos últimos meses e agora está da minha altura.

Paro de cortar a cebola por um momento e me viro para ele.

— Posso ver?

Charlie ergue o bloco de desenho e me mostra uma cadeia de montanhas que parece a paisagem de outro planeta.

— Adorei — digo. — Fez só por fazer?

— Trabalho da escola. Para amanhã.

— Então continue, seu atrasadinho.

Aqui neste momento, feliz e ligeiramente embriagado em minha cozinha, nem imagino que hoje à noite tudo isso acabará. Será o fim de tudo que conheço, tudo que amo.

Não há avisos quando tudo está prestes a mudar, a ser tomado de você. Nenhum alerta de proximidade, nenhuma placa indicando a beira do precipício. E talvez seja isso o que torna a tragédia tão trágica. Não é apenas o que acontece, mas como acontece: um soco que vem do nada, quando você menos espera. Não dá tempo de se esquivar ou se proteger.

Os spots de luz brilham na superfície do vinho e a cebola está começando a fazer meus olhos arderem. Na sala, um disco de Thelonious Monk gira na vitrola. O som das gravações analógicas é de uma riqueza que nunca me cansa, em especial o crepitar da estática entre uma faixa e outra. Pilhas e mais pilhas de vinis raros enchem a sala. Vivo prometendo a mim mesmo que algum dia vou tirar um tempinho para organizar tudo.

Minha esposa, Daniela, está sentada ao balcão da cozinha, girando a taça de vinho quase vazia numa das mãos e mexendo no celular com a outra. Ela sente meu olhar e sorri, sem tirar os olhos da tela.

— Eu sei, estou violando o princípio fundamental da noite em família.

— O que tem aí de tão importante? — pergunto.

Daniela ergue seus olhos escuros de espanhola.

— Nada.

Vou até ela, pego calmamente o celular de sua mão e o coloco na bancada.

— Você podia fazer o macarrão — digo.

— Prefiro ver você cozinhar.

— Ah, é? — Depois, mais baixo: — Fica excitada?

— Não. É que é mais divertido ficar só bebendo, sem fazer nada.

Sinto seu hálito adocicado pelo vinho, e ela abre aquele seu sorriso arquitetonicamente impossível, que ainda me deixa louco.

Termino minha taça.

— Mais uma garrafa?

— Acho que é nosso dever.

Enquanto manipulo o saca-rolhas, ela volta a pegar o celular para me mostrar a tela.

— Estava lendo uma crítica da Chicago Magazine sobre a exposição de Marsha Altman.

— Foram bonzinhos com ela?

— Aham. Quase uma carta de amor.
— Que bom para ela.
— Sempre achei que…

Ela não termina a frase, mas nem precisa. Quinze anos atrás, antes de nos conhecermos, Daniela era uma promessa no cenário artístico de Chicago. Tinha um estúdio em Bucktown, já exibira seus trabalhos em uma meia dúzia de galerias e acabara de conseguir sua primeira exposição individual em Nova York. Então veio a vida. Eu. Charlie. Uma incapacitante depressão pós-parto.

Descarrilamento.

Hoje, ela dá aulas particulares de arte para alunos do fundamental.

— Não é que eu não fique feliz por ela. Marsha é brilhante, ela merece.

— Caso sirva de consolo, esses dias mesmo Ryan Holder ganhou o Pavia — comento.

— O que é isso?

— Um prêmio multidisciplinar, concedido por realizações nas ciências físicas e naturais. No caso de Ryan, foi por um trabalho em neurociência.

— E ganha uma bolada?

— Um milhão de dólares. Honrarias. Financiamentos de pesquisas.

— Assistentes gostosas?

— Esse é o maior prêmio, claro. — Então, acrescento: — Ryan me chamou para uma comemoração informal hoje, mas eu nem vou.

— Por quê?

— Porque hoje é a nossa noite.

— Devia ir.

— Prefiro ficar aqui, de verdade.

Daniela ergue a taça vazia.

— Então você está me dizendo que hoje nós dois temos bons motivos para beber muito.

Dou um beijo nela e encho sua taça com o vinho que acabei de abrir.

— Você podia ter ganhado esse prêmio — diz Daniela.

— Você podia ser o maior nome no cenário artístico desta cidade.

— Mas fizemos isto. — Ela indica o amplo espaço em volta, referindo-se à nossa casa de pé-direito alto. Comprada com o dinheiro da herança que ganhei numa época pré-Daniela. — E aquilo — acrescenta, apontando para Charlie.

Ele desenha com uma intensidade tão linda que lembra a mãe quando está concentrada em alguma pintura.

É estranho ter um filho adolescente. Uma coisa é criar um menininho, e outra, completamente diferente, é uma pessoa quase adulta esperar que você a ensine a viver. Sinto que tenho pouco a oferecer. Sei que alguns pais enxergam o mundo com clareza e confiança, que sabem exatamente o que dizer aos filhos, mas não sou um deles. Quanto mais envelheço, menos entendo as coisas. Amo meu filho. Charlie é tudo para mim. No entanto, não consigo fugir à sensação de que estou em falta com ele. Lançando-o aos lobos sem nenhum recurso além das migalhas de minha perspectiva incerta.

Abro o armário ao lado da pia e começo a procurar um pacote de fettuccine.

— Seu pai podia ter ganhado o Nobel — diz Daniela a Charlie.

Dou uma risada.

— Isso é um exagero.

— Não deixe que ele engane você, Charlie. Seu pai é um gênio.

— São seus olhos — respondo. — E o vinho.

— É verdade, você sabe que é. A ciência não avança mais por sua culpa, porque você ama sua família.

Só me resta sorrir. Quando Daniela bebe, três coisas acontecem: seu sotaque original aflora, ela se torna agressivamente gentil e tudo que fala tende à hipérbole.

— Seu pai me disse uma vez… nunca vou esquecer… que a pesquisa científica consome a vida de uma pessoa. Ele disse…

Por um instante, para minha surpresa, a emoção toma conta de Daniela. Seus olhos ficam marejados e ela balança a cabeça rapidamente, como sempre faz quando sente que está prestes a chorar. No último segundo, ela contém as lágrimas.

— Ele me disse: “No meu leito de morte, quero me lembrar de vocês, não de um laboratório frio e asséptico.”

Olho para Charlie e o flagro fazendo uma careta enquanto desenha.

Provavelmente constrangido com nossa excessiva demonstração sentimental.

Fico olhando para o interior do armário enquanto espero o nó na garganta desatar.

Quando passa, pego o macarrão e fecho o armário.

Daniela toma o vinho.

Charlie desenha.

O momento passa.

— Onde é a festa do Ryan? — pergunta Daniela.

— No Village Tap.

— É o seu bar preferido, Jason.

— E daí?

Ela se aproxima e pega o pacote de macarrão da minha mão.

— Vá tomar um drinque com seu velho amigo de faculdade. Diga que está orgulhoso dele. Cabeça erguida. E dê os parabéns por mim.

— Não vou dar seus parabéns.

— Por que não?

— Porque ele tem uma queda por você.

— Para com isso.

— É sério. Há um tempão. Desde a faculdade. Não se lembra da última festa que demos no alojamento? Quando ele ficou tentando beijar você?

Ela apenas ri.

— O jantar vai estar na mesa quando você voltar — diz.

— Ou seja, tenho que voltar em…

— Quarenta e cinco minutos.

— O que seria de mim sem você?

Ela me dá um beijo.

— Não vamos pensar nisso. Pego minhas chaves e a carteira no prato de cerâmica que fica ao lado do micro-ondas e vou até a sala. Meus olhos passam brevemente pela luminária de hipercubo acima da mesa de jantar, um presente de Daniela quando completamos dez anos de casados. O melhor que já ganhei.

Quando chego à porta, ela grita:

— Traz sorvete!

— De flocos! — acrescenta Charlie.

Faço sinal de positivo com o polegar.

Não olho para trás.

Não me despeço.

E o momento passa despercebido.

O fim de tudo que conheço, tudo que amo. [Leia +]

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