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Um novo clássico para meninas fortes

22 / novembro / 2016

Por Fabiane Pereira*

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Provavelmente você já ouviu falar de As mil e uma noites, um clássico da literatura mundial que reúne histórias e contos populares originários do Oriente Médio e da Ásia Meridional, remontando até o século IX. Aqui no Ocidente, a obra se tornou um best-seller da literatura universal com a tradução de Antoine Galland para o francês, em 1704. As várias histórias desse clássico estão no imaginário coletivo de todos, por isso arrisco uma provocação: pago para ver quem, ainda na infância, não ouviu falar sobre Ali Babá e os quarentas ladrões, Aladim e o gênio da lâmpada ou sobre a espertíssima Sherazade, que dribla a morte narrando (bons) contos.

Em As mil noites, reconto de Emily Kate Johnston recém-lançado pela Intrínseca, a história se repete, mas de forma diferente. E não é à toa: além de escritora, E. K. Johnston é arqueóloga, já morou em quatro continentes, se especializou em árabe e hebraico bíblicos e fez pesquisa de campo no deserto! É exatamente essa familiaridade com o cenário da obra original que a ajudou a construir a nova narrativa. Assim como na história de Sherazade, Lo-Melkhiin (o rei desta história) é bom para seu povo, ao contrário de seu pai. Porém, quando se casa pela primeira vez, com direito a uma grande festa, sua esposa morre na noite de núpcias.

O fato ocorre inúmeras vezes, até que suspeitas começam a ser levantadas e o povo começa a temê-lo. Importante ressaltar que, exceto por Lo-Melkhiin e pouquíssimos outros personagens, nenhum nome é revelado ao longo do livro, mas a escrita é amarrada de forma tão precisa que só notamos isso quando finalizamos a leitura. A história de As mil noites começa quando Lo-Melkhiin parte em busca de sua futura rainha, após ter matado trezentas. Temendo pela irmã, que é a menina mais bela de sua aldeia, a protagonista do livro — cujo nome não é revelado — faz de tudo para ser levada no lugar dela.

As duas são muito próximas e fazem tudo juntas. Nos dias de hoje, talvez pudéssemos dizer que elas compartilhavam do princípio da “sororidade”, palavra introduzida no vocabulário pelo movimento feminista contemporâneo. Aqui, abro parênteses para explicar melhor esta questão tão atual e importante: o feminismo é uma luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. É uma luta em prol das mulheres, devemos nos unir, e não competir umas com as outras. A competição nos separa. Sororidade é a tradução de “sisterhood” ou irmandade, em inglês. É a possibilidade de ver outras meninas como “manas”, aliadas, e não como concorrentes ou inimigas.

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Por isso, quando Lo-Melkhiin aparece na sua tribo para levar a próxima rainha para o palácio, ela, que não era tão radiante quanto a irmã, se arruma deslumbrantemente e, ao encontrar o rei,  acaba sendo a escolhida.

Eis o arco dramático do texto: a rainha agora precisa se manter viva. Ela sabe que as ex-esposas não foram rainhas por mais de dois ou três dias e está disposta a quebrar esse ciclo, apesar de ter consciência de que a morte está à espreita. Noite após noite, o rei vai ao quarto dela ouvir suas histórias, e dia após dia ela continua viva e cada vez mais forte. Durante os momentos que passam juntos, nossa protagonista se fortalece, e suas histórias começam a ganhar vida própria.

Abro aqui outro parênteses para dizer que a autora optou por uma narrativa que estimula (e muito!) a viagem proporcionada por uma boa leitura. Emily Kate Johnston constrói uma trama que entrelaça ciência, magia, mitologia árabe, religiosidade e o poder de realização. O leitor sente o imenso amor da rainha pela irmã, a raiva pela sua situação, suas frustrações e a força oriunda das mulheres que, mesmo menosprezadas, resistem e se fortalecem.

Conforme o tempo passa e a nova rainha continua viva, ela fica cada vez mais confiante em seus poderes, e os súditos do reino passam a confiar e a depositar nela suas esperanças para as tão esperadas melhorias sociais. Ao perceber que a “magia” está dentro dela, a rainha percebe que pode desafiar até mesmo um rei. Tiramos daí uma importante lição, meninas! Quanto mais empoderadas ficamos, mais entendemos que nossa capacidade de realização é infinita. Temos mais recursos e opções para melhorarmos tanto nossa vida quanto a vida de quem nos cerca — no caso de nossa protagonista, o povo de um reino.

>> Leia um trecho de As mil noites

 

Fabiane Pereira é jornalista, pós-graduada em Jornalismo Cultural pela ESPM e em Formação do Escritor pela PUC-Rio. É mestranda em Comunicação, Cultura e Tecnologia da Informação no Instituto Universitário de Lisboa. É curadora do projeto literário Som & Pausa e toca vários outros projetos pela sua empresa, a Valentina Comunicação. Foi apresentadora do programa Faro MPB, na MPB FM, e atualmente comanda o boletim Faro Pelo Mundo, na mesma emissora.

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