testeAs revelações de um sobrevivente

Por Luana Freitas*

O milagre no Hudson (Fonte)

Eu amo trabalhar com livros de não ficção, adoro aprender a partir das experiências dos outros e poder mergulhar em um bom relato. E com Sully não foi diferente: mergulhei em uma história impactante e incrível e foi uma delícia trabalhar no texto. No entanto, esse livro teve um presente a mais — algo único, embora nada animador para nós, que viajamos de avião: é extremamente raro um piloto sobreviver a um acidente e poder contar tudo o que aconteceu. Em geral, o que resta é apenas a caixa-preta e as deduções dos peritos e investigadores a partir do que restou (ou não) da aeronave.

Nesse sentido, Sully é uma dádiva e uma revelação. Além do relato de um feito extraordinário — o pouso de um Airbus com 155 pessoas a bordo no congelante rio Hudson em plena Manhattan depois que os dois motores da aeronave colapsam devido ao choque com um bando de pássaros —, o livro traz todos os detalhes, todo o raciocínio, todo o medo e a astúcia que permearam o evento e só poderiam ser contados por quem de fato viveu a experiência. Sobre isso, o que posso dizer é que o livro muitas vezes me tirou o fôlego, me deu um nó no estômago. É impossível ficar indiferente ao capítulo que narra os minutos exatos do acidente, o momento aterrorizante em que os pássaros entram nos motores e piloto e copiloto se dão conta de que não há como voltar para o aeroporto mais próximo, e só lhes resta planar. Não há tempo para fraquejar, não há tempo sequer para rezar — eles decidem tudo em segundos.

Mas o livro não fala só sobre o acidente em si. Ao analisar a própria trajetória — e consequentemente a carreira —, o comandante Sully traz inquietantes revelações sobre o setor aéreo como um todo, sobretudo a maneira como a concorrência desenfreada entre as companhias aéreas e a pressão pelo barateamento das passagens comprometeram os padrões e as rotinas de segurança em aeroportos de todo o mundo. O retrato que ele faz dos bastidores do dia a dia de pilotos, comissários de bordo e controladores de voo não é nada bonito — para além da rotina dura de treinamentos, procedimentos e atualizações, há as condições de trabalho cada vez mais sacrificantes. Creio que a passagem que melhor prova isso é quando autor conta que muitos pilotos (e seus passageiros e tripulações) morrem por tentar salvar a aeronave até o último segundo, com medo do impacto do prejuízo de milhões pela perda da aeronave em suas carreiras. É perturbador ler o relato de Sully sobre como teve de tomar a decisão deliberada de priorizar a vida de todos em detrimento do avião.

Outra questão crucial para o comandante e sobre a qual só poderíamos saber graças ao livro é o drama que enfrentou logo após o acidente. Hoje todos sabemos que ele de fato foi um herói, que o pouso forçado no rio, além de uma manobra incrível, era a única saída possível para salvar a vida de todos a bordo. Mas a verdade é que Sully foi massacrado pela imprensa, questionado por muitos jornalistas, que o pintaram como negligente e frio. Além disso, logo após o resgate, ele passou por vários interrogatórios conduzidos pelas autoridades do setor aéreo que ponderavam se ele não teria na verdade colocado a vida de todos em risco, se de fato os dois motores haviam falhado, se realmente não tinha como voltar ao aeroporto e assim não colocar em perigo os passageiros, os cidadãos e os prédios de Manhattan.

Todas essas perguntas o atormentaram por um longo tempo, e até hoje é assustador pensar que toda a sua carreira, toda a sua vida foram julgadas por uma decisão tomada em menos de cinco minutos. Uma passagem emblemática do livro mostra como Sully teve receio ao ser chamado para ouvir a gravação dos diálogos na cabine da aeronave durante o fatídico voo. Mesmo sabendo que tinha tomado a decisão certa e salvado a vida de todos, havia muito em jogo, ninguém sabia o que poderia ser interpretado das palavras ditas na cabine.

Uma das primeiras ordens que Sully recebeu ao sair do avião que afundava, dada pela companhia aérea para a qual trabalhava, foi a de que não falasse com ninguém além das autoridades e que tomasse muito cuidado com o que diria. Felizmente para nós ele logo se libertou dessas amarras e decidiu contar tudo o que aconteceu naquele dia e todo o lado sombrio por trás da figura de herói americano.

 

*Luana Freitas é editora assistente de ficção e não ficção estrangeiras. Estuda tradução e até hoje se espanta com o universo de descobertas que faz ao trabalhar com livros.

testeCinco livros sobre maternidade

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Uma das características mais importantes da literatura é ampliar as perspectivas e desconstruir alguns mitos. A maternidade, por exemplo, é um assunto que gera bastante discussão. Os rituais maternos, o estereótipo da mãe ideal, o comportamento que a mulher deve ter, o que se deve fazer com os filhos, como lidar com os seus desejos e a culpa são algumas questões da vida real que também são abordadas em obras de ficção.

Confira a lista com cinco livros que apresentam diferentes aspectos da maternidade:

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A filha perdida, de Elena Ferrante — Leda é uma professora universitária de 40 e poucos anos que decide tirar férias no sul da Itália após as filhas já crescidas se mudarem para o Canadá com o pai. Com elementos simples e uma trama bem construída, a obra acompanha os sentimentos conflitantes dessa personagem que reflete sobre o papel de ser mãe, os desejos e as vontades das mulheres.

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Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver — De forma perturbadora, a autora levanta a polêmica sobre a maternidade romantizada e constrói uma personagem muito forte e humana. Na obra, uma mãe escreve cartas ao pai do seu filho Kevin, na tentativa de compreender o motivo do assassinato em massa cometido pelo adolescente na escola. Ela rememora cada minúcia da vida conjugal e faz um antielogio à maternidade ao explicitar os instintos sombrios, diariamente menosprezados, por trás dos sagrados laços de família.

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Pequenas grandes mentiras, de Liane Moriarty — A obra conta a história de três mulheres que aparentemente têm uma vida perfeita em uma pequena cidade da Austrália. Madeline é forte e passional, Celeste é dona de uma beleza estonteante e Jane é uma mãe solteira recém-chegada na cidade. Os filhos das três mulheres estudam na mesma escola, onde acontece uma misteriosa tragédia que as envolve. Violência doméstica, estupro, bullying e a pressão que as mães sofrem são alguns dos temas abordados na história.

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Primatas da Park Avenue, de Wednesday Martin — O livro causou uma grande polêmica quando foi publicado nos Estados Unidos.  Wednesday analisa a região do Upper East Side, área mais rica de Nova York, e aponta o comportamento das moradoras que sofrem com depressão, vícios e ansiedade por serem as principais responsáveis pela criação dos filhos e terem que se adequar aos padrões rígidos de beleza e status social. Com um relato forte e repleto de curiosidades, a autora traz à tona questões que assolam o universo feminino, como a insegurança e o medo de não ser uma boa mãe.

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Um mais um, de Jojo Moyes — Nessa obra publicada em 2015, a autora de Como eu era antes de você traz uma personagem que representa as mães solteiras, que cuidam dos filhos sozinhas e fazem qualquer coisa para ajudá-los.

Jess se casou muito nova depois de engravidar.  Quando o marido sai de casa para tratar a depressão na casa da mãe, ela precisa acumular dois trabalhos para sustentar a família composta por Tanzie, a filha que é um prodígio da matemática, Nicky, o enteado emo, e um gigantesco cachorro babão. Para garantir a educação e o futuro de Tanzie, Jess vai ter de recorrer a um geek milionário e fazer uma road trip cheia de surpresas.

testeAs mentiras sinceras da literatura

Por Julia Wähmann*

andrew-matusikAndrew Matusik (Inspiração Rene Magritte)

Já faz uns dez anos que li A hora da estrela, da Clarice Lispector. Coincidiu de Carolina, uma grande amiga, ler ao mesmo tempo que eu, e frequentemente nossas conversas giravam em torno de Macabéa, protagonista do livro. Falávamos dela como se fosse real — e de certa forma ela era, afinal estava presente em nossas vidas de muitas maneiras. Mais ou menos na mesma época, conheci uma livraria famosa de Paris que exibia num dos painéis da fachada a seguinte frase, em tradução livre: “O fato é que Tolstói e Dostoiévski são mais reais para mim que meus vizinhos.” Eu poderia dar mais uma porção de exemplos de como a literatura invade cotidianos: a prima que se pergunta o que Atticus Finch (personagem de Harper Lee em O sol é para todos) diria; os amigos que afirmavam morar em Macondo (cidade imaginária de Gabriel García Márquez, em Cem anos de solidão) numa extinta rede social. Se a vida imita a arte, o contrário não é menos incomum, sobretudo no campo literário.

untitledÉ destas confusões entre realidade e invenção que trata Delphine de Vigan em seu novo livro, Baseado em fatos reais, romance premiado e publicado quatro anos após Rien ne s’oppose à la nuit, relato ficcionalizado de sua relação com a mãe bipolar. O ponto de partida desta nova história é, justamente, a “ressaca” após o estrondoso sucesso e a repercussão da obra anterior, em que expôs familiares e relações que, a princípio, deveriam ficar restritas a um âmbito privado. A narradora/personagem de Baseado em fatos reais, também chamada Delphine, passa por uma grave depressão causada pela incapacidade de escrever quando se vê diante de um novo projeto. Fascinada por reality shows em que pessoas reais e comuns ganham contornos fictícios devido a manobras de edição, ela vê neste universo um possível enredo para um novo trabalho. É quando L., que será tratada apenas pela inicial ao longo da narrativa, cruza seu caminho.

L. é uma ghost-writer, ou seja, quem efetivamente escreve textos e livros que são assinados por outra pessoa, normalmente alguém digno de ter sua biografia publicada, como grandes artistas ou políticos. L. é, portanto, a pessoa que mais conhece a vida, a intimidade e os detalhes da celebridade em questão; a pessoa que tem acesso, às vezes irrestrito, aos hábitos de seu objeto; a pessoa que se coloca no lugar do outro para dar voz às suas memórias, e também aos feitos e superações.

L. se aproxima de Delphine e logo se mostra confiável, disponível e sensível ao período turbulento que a escritora enfrenta. Também se revela uma grande crítica das ideias de Delphine para o novo livro, quebrando seus argumentos acerca do valor da ficção que planeja escrever. Para L., os leitores não estão mais interessados em tramas e personagens imaginados e construídos com base em pesquisa: eles querem a “Verdade”, com letra maiúscula. A discussão em torno dessa “Verdade” é o primeiro de alguns embates entre a personagem Delphine e L. Enquanto a escritora afirma que a verdade (com minúscula) não existe, L. defende que apenas ela importa para o leitor, e usa como evidência a crescente produção de obras — no cinema, no teatro, na literatura — que trazem em destaque a informação de serem inspiradas em fatos reais. Enquanto Delphine deseja escrever uma história que soe crível, L. levanta a bandeira da morte da ficção.

De um tempo para cá, a maioria dos autores que escreveram obras que guardam alguma semelhança com suas biografias foram confrontados com a pergunta: seu livro é autobiográfico? O termo “autoficção”, hoje quase um gênero por si só, foi cunhado no fim da década de 1970. Ambas as definições provocam rixas e debates acalorados entre estudiosos e pesquisadores, então a expressão “escritas de si” acena como possível conciliadora, abrangendo as duas classificações. Dentre leitores, jornalistas, entrevistadores e mediadores de conversas, muitos enveredam pela investigação que procura confirmar a veracidade de fatos contados no âmbito da ficção e que coincidem com o que sabemos da vida de seus autores – seja um nome, uma data ou uma cidade. É fácil enxergar possíveis espelhos em livros, e muitos autores tiram proveito dessas interseções, fornecendo pistas escorregadias e atuando como verdadeiros performers de si, o que atiça ainda mais a curiosidade do público. No século XVIII, ao contrário, escritores buscavam uma prosa que representasse o senso comum, um retrato da época, então a individualidade, quando entrava em cena, questionava esse cenário mais amplo de uma “verdade” social.

de-vigan-delphine-2011-nbc-delphine-jouandeauA escritora Delphine De Vigan (Foto: Delphine-Jouandeau)

Delphine De Vigan destrincha todos esses aspectos em Baseado em fatos reais ao longo das conversas da personagem Delphine com L., que começam em tom cordial e logo ganham tintas mais sombrias, um tom que a amizade de ambas também começa a aparentar. L. torna-se cada vez mais obstinada em convencer Delphine a voltar-se para si mesma. A tensão aumenta proporcionalmente à obsessão de L. A certa altura, comecei a me perguntar o que Atticus Finch – aquele personagem lá do começo deste texto – faria diante de uma figura tão engenhosa.

Como leitora, pouco me importa o grau de realidade que eu possa conferir a uma história que me é contada de maneira convincente, com a qual eu estabeleça uma relação de confiança, empatia. Se L. é real ou não, isso não muda o fato de que, enquanto tomava conhecimento de suas características e ações, ela me apavorava em escala galopante, e pude vê-la com todo o espanto que me causava. Mesmo que me provassem por A + B que a história de Delphine é fruto de sua imaginação — ou o contrário —, o caminho já estaria percorrido, e o maior prazer de ler um livro está no virar das páginas, na ânsia pelo próximo capítulo, nas reações que temos diante de cada detalhe que se torna quase palpável. Assim como toda vida pode ser floreada e ligeiramente modificada, seja pela natural seleção do que se escolhe contar ou pelo exagero de certos aspectos dela, toda ficção pode estar impregnada de elementos do real, todo personagem pode ter trejeitos de pessoas que “existem”.

“Tudo que não invento é falso”, diz um verso de Manoel de Barros. Um outro lado dessa imagem está em uma das falas de Delphine no livro, uma citação do escritor francês Jules Renard: “Quando uma verdade tem mais de cinco linhas, é um romance.” Em alguma esfera, tudo é falso; em outra, é tudo verdadeiro. Quando a verdade tem as 256 páginas do romance de Delphine de Vigan, é bom se preparar para passar tardes ao telefone com sua melhor amiga em conversas sobre L.

 

Julia Wähmann é escritora. Em 2015 publicou Diário de Moscou (Megamíni/7 Letras) e André quer transar (Pipoca Press), e em 2016, Cravos (Record). Ela coordena o serviço de curadoria Garimpo Clube do Livro.

testeLançamentos de Novembro

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Confira as sinopses e trechos dos livros que publicaremos neste mês:

A química, de Stephenie Meyer: Uma ex-agente especial fugindo de seus antigos empregadores precisa aceitar um novo trabalho para limpar seu nome e salvar a própria vida. A química, o primeiro lançamento inteiramente inédito da autora em seis anos, é um thriller diferente de tudo o que ela já publicou. [Leia +][Leia um trecho]

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Não se enrola, não, de Isabela Freiras: “Enrolar-se: pensar de um jeito e fazer exatamente o contrário”. Após Não se apega, não e a sequência, Não se iluda, não, Isabela Freitas mostra em seu terceiro livro os primeiros passos de seus personagens na vida adulta, com toda a independência e as responsabilidades que ela proporciona. [Leia +][Leia um trecho]

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O lar da srta. Peregrine para crianças peculiares, de Ransom Riggs: Jacob cresceu ouvindo as histórias fantásticas que o avô contava. Essas histórias foram perdendo o encanto à medida que ele crescia, até que, aos dezesseis anos, tudo volta à tona para se provar real. O primeiro livro da série chega agora às livrarias em edição de luxo. [Leia +][Leia um trecho]estanteintrinseca_novembro16_blog_paginasinternas8

O som do amor, de Jojo Moyes: um romance sobre obsessão, manipulação, segredos e paixões, O som do amor é um dos primeiros livros escritos pela autora do best-seller Como eu era antes de você. Por meio de personagens carismáticos e capazes de tudo para realizar seus objetivos, Moyes mantém seu estilo inconfundível em uma brilhante história sobre recomeços. [Leia +][Leia um trecho]

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Enquanto houver champanhe, há esperança: Uma biografia de Zózimo Barrozo do Amaral, de Joaquim Ferreira dos Santos: Por quase trinta anos a sociedade brasileira foi desnudada pela escrita espirituosa do jornalista Zózimo Barrozo do Amaral em sua coluna diária no Jornal do Brasil e depois em O Globo. Joaquim Ferreira dos Santos reconstitui toda a trajetória do colunista, desde sua infância, passando por seu começo de carreira quase acidental no jornalismo, até conquistar uma coluna assinada aos vinte e sete anos. [Leia +][Leia um trecho]

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História da sua vida e outros contos, de Ted Chiang: Ícone da ficção científica contemporânea é publicado pela primeira vez no Brasil em coletânea que inclui o conto que inspirou o filme A Chegada. Com apenas quinze trabalhos publicados, entre contos e novelas curtas, sua pequena produção contrasta com expressiva quantidade de premiações: os oito textos reunidos em História da sua vida e outros contos ganharam no total nove importantes prêmios, dentre eles Nebula, Hugo, Locus, Sturgeon, Sidewise e Seiun. [Leia +][Leia um trecho]

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O cérebro adolescente, de Dra. Frances E. Jensen com Amy Ellis Nutt: Por muitos anos, cientistas acreditaram que o cérebro adolescente era essencialmente como o de um adulto, apenas com menos experiência. Na última década, porém, neurologia e neurociência revelaram que nos anos da adolescência acontecem estágios vitais de desenvolvimento cerebral. Um livro acessível e bem embasado que lança um novo olhar sobre o cérebro dos jovens. [Leia +][Leia um trecho]

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Unidos somos um, de Pittacus Lore: O aguardado desfecho da série Os Legados de Lorien, repleto de surpresas e reviravoltas de tirar o fôlego. A guerra entre a Garde e os mogadorianos, que por tanto tempo ocorreu em segredo, tornou-se um conflito global. Agora, os humanos precisam aceitar não só que alienígenas existem, mas também que terráqueos estão começando a manifestar poderes sobrenaturais. [Leia +][Leia um trecho]

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testeAs memórias afetivas de Neil Gaiman

Por Mário Feijó*

Neil Gaiman

Neil Gaiman (Fonte)

Neil Gaiman é desconcertante, às vezes incômodo. Quem o acompanha desde os anos 1980 sabe disso. Dos quadrinhos para os livros, da fantasia adulta para a literatura infantil, umas poesias aqui, uns roteiros e contos ali, lá vai Gaiman escrevendo sobre a vida, que é imensa e complicada e não dá nenhum alerta antes de nos ferir. De vez em quando, ele reúne algum material disperso, geralmente contos, e procura seu editor. Assim ganhamos Fumaça e espelhos e, depois, Coisas frágeis. Mas Alerta de risco, publicado em agosto deste ano pela Intrínseca, é melhor. E não só porque nessa antologia Gaiman resolveu mostrar toda a sua versatilidade literária… Cara, tem Doctor Who e Sherlock Holmes!
Todos têm histórias guardadas na memória. Nascemos e crescemos imersos em narrativas mesmo antes de sermos alfabetizados ou de conquistarmos autonomia como leitores. Com o tempo, fazemos releituras, reinterpretamos, permitimos dúvidas e perguntas inconvenientes sobre os personagens que conhecemos tão bem, sobre os universos que amamos. Ou seja, nossas narrativas fundamentais se transformam constantemente, desde a infância até a velhice, e essas transformações podem nos enriquecer de múltiplas formas ­– mas são perturbadoras. Assim como nossas lembranças de família.

Nesta nova antologia, o que o criador de Sandman e Coraline faz é compartilhar lembranças afetivas de suas leituras, usando o estilo precioso e preciso que tanto gosto de elogiar. Na introdução do livro, ele explica a origem de cada texto, de onde veio cada inspiração. Como ele mesmo resume, autores moram em casas construídas por outros autores.

Jack Vance, Ray Bradbury, Arthur C. Clarke, Conan Doyle… A lista de influências é ótima. Como estamos falando de Neil Gaiman, claro que os contos de fada estão lá. Malévola, Branca de Neve e Bela Adormecida habitam o mesmo mundo, em reinos vizinhos. Assim sendo, as personagens podem ultrapassar as montanhas e se encontrar. Os eventos que começam em “Respeitando as formalidades” continuam nas páginas seguintes, em “A Bela e a Adormecida”. No primeiro conto, temos o ponto de vista de Malévola sobre a ofensa recebida da família de Aurora. Esqueça que ela é uma bruxa, ou fada má; pense nela como uma de suas tias. Leia com atenção e carinho, pois isso poderá lhe poupar muitos aborrecimentos um dia desses. Lembre-se das pequenas formalidades nos batizados, casamentos, divórcios e funerais.

No conto seguinte, que se passa muito tempo depois, a maldição do sono iniciada por Malévola está se espalhando para além das fronteiras, ameaçando o reino de Branca de Neve. Por ter sobrevivido a um feitiço semelhante, ela goza de imunidade. Como boa heroína, vai com seus melhores anões cumprir o dever de uma rainha e resolver um mistério. Não se assuste com os sonâmbulos envoltos em teias de aranha; zumbis são bem piores. Essa história, aliás, está disponível em edição ilustrada por Chris Riddell. O mesmo ocorre com A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras, com ilustrações de Eddie Campbell.

Ah, “Um calendário de contos” também faz parte desta seleção. Anos atrás, a BlackBerry convocou artistas para desenvolverem projetos multimídias em parceria com os clientes da empresa. Gaiman entrou no jogo, propondo ideias para microcontos, um para cada mês, a partir das quais os fãs elaboravam frases, que eram retomadas por Gaiman para a construção de sua narrativa. Trabalho colaborativo. Um resultado bastante interessante. E badaladíssimo nos estudos de comunicação e cultura, considerado um marco no uso das mídias sociais para a criação artística.

capa_alertaderisco_webAo mesmo tempo que faz das memórias afetivas sua base de trabalho nesta antologia, o autor não perde a oportunidade para explorar lembranças falhas, imperfeitas ou incompletas. São aquelas histórias guardadas no passado de cada um, ou porque eram segredos ou porque não houve a oportunidade certa para contar. Pode acontecer com seu pai, vide “História de aventura”. Descobrir um pai diferente daquele que você julgava conhecer mudaria sua perspectiva da vida? Nada assustador, veja bem. Ele continuaria a ser o cara legal de sempre, entretanto… Dá para imaginar que o sujeito mais pacato de todos foi um Indiana Jones? Não são os pterodátilos, os astecas ou a garota alemã (que não era alemã) que perturbam o narrador: o impacto é você descobrir que não conhecia o próprio pai, que jamais desconfiou da verdade. De repente, sua vida é uma bolha de ilusões. Os outros sabiam, você não. Uma típica sacanagem de família.

Quanto aos segredos, quanto um garoto pode revelar de verdade sobre sua primeira namorada?  Cassandra é apaixonante, um sonho. Boa demais para ser real? O único jeito de saber é lendo “Detalhes de Cassandra”. Aliás, esta é a prova de que há enredos perfeitos para narrativas curtas.

Quando estiver com Cassandra, lembre que cada um de nós percebe a realidade ao redor de maneira diferente (pois cada um possui uma vivência individual, única e exclusiva). Ainda assim, no entanto, nos esforçamos para construir uma realidade coletiva onde possamos habitar juntos ― quem sabe até ter certa sensação de bem-estar ou alguém a quem amar, alguém que possa corresponder ao nosso amor de preferência. A realidade em que estamos inseridos, portanto, é uma criação coletiva de nossas imaginações, linguagens e narrativas. Criação que começa a ser construída na primeira infância. Ou seja, sacanagens de família importam.

Família sacana é a do Shadow, protagonista do último conto da antologia e também do clássico Deuses americanos (que foi relançado em outubro deste ano, em edição preferida do autor). Se você ainda não leu o romance que mudou a trajetória de Gaiman, tudo bem. “Cão negro” tem unidade de ação, é completo em si mesmo, com início, meio e fim. Aposto que Conan Doyle e Edgar Allan Poe apreciariam, pelo equilíbrio entre mistério, terror e morte. Allan Moore, Stephen King e Clive Barker também. É a única trama inédita da antologia, escrita especialmente para fechar o livro.

Se você ainda não leu Deuses americanos, leia assim que puder. Foi uma revolução em termos de literatura fantástica e quebra de paradigmas. Para os leitores de Sandman, foi a chance de reencontrar o labirinto infinito de mitologias onde todas as divindades coexistem simultaneamente. Para quem descobriu Gaiman nesta obra, Odin e Loki ganharam muito mais significado do que a Marvel pode proporcionar. Pois é, até as famílias de Asgard são sacanas.

É por causa de “Cão negro” que sugiro, ao terminar “Alerta de risco”, aproveitar o embalo e ler (ou reler) “O barril de amontillado”, de Poe. Todo bom escritor remete a outro; estão sempre interligados de alguma maneira. Daí Gaiman fazer questão de Shadow citar Watson ao examinar as pegadas de um gigantesco cão de caça.

Tenho endereço certo em Londres: Baker Street, 221B. Assim sendo, cometi o pecado de não ler a antologia na sequência concebida pelos editores, fui direto para “Caso de morte e mel”, a versão Gaiman para Sherlock Holmes. Foi inevitável imaginar o hilário diálogo entre Mycroft e Sherlock interpretado pelos atores Mark Gatiss e Benedict Cumberbatch. Foi gratificante embarcar na pergunta fundamental: por que Holmes dedicou sua velhice à apicultura? Por que mel seria algo tão importante? Aqui cabe meu próprio alerta: quem leu O último adeus de Sherlock Holmes (His last bow) conhece o desfecho dado por Doyle para a vida de desafios de seu detetive. Gaiman, portanto, começa de onde o cânone parou. Entretanto, aqueles que leram apenas as primeiras aventuras, ou as mais famosas, talvez se surpreendam com as premissas usadas em “Caso de morte e mel”. Desnecessário. Deixem para se surpreender no final.

Gaiman nos bastidores da série britânica Doctor Who (Fonte)

Quanto ao nosso longevo Doutor Who, este é o décimo primeiro, aquele que foi interpretado por Matt Smith. O autor faz questão de definir em qual momento exato da cronologia do Senhor do Tempo seu conto é ambientado. Como fã desde menino da série da BBC e, mais tarde, um de seus roteiristas, Neil estava em casa, na boa — e se divertindo —, ao escrever “Hora nenhuma”. Embarque na TARDIS, pois é hora de salvar o continuum. Mesmo quem não é britânico ou fã de ficção científica vai curtir a viagem.

Sim, Gaiman é desconcertante, por mexer tanto em memórias e famílias; é incômodo quando perturba nossos afetos, questiona o que sabemos sobre as pessoas que amamos – vivas ou mortas. Mesmo assim, ele nos faz querer confiar, querer acreditar. Viver não é mera existência, embora alguns precisem estar no limite, ou diante do sobrenatural, para entender isso. A vida pede sentido e propósito, o que garante bastante complicação para qualquer um de nós. Para isso, é preciso escolher o que lembrar ou o que esquecer. Eis um dilema fundamental, que fica cada vez mais evidente ao longo da jornada. A literatura de Gaiman pode ser excelente companheira e conselheira, mas não espere encontrar nela um lugar seguro.

 

* Mário Feijó é doutor em Letras e professor da Escola de Comunicação da UFRJ, onde ministra a disciplina complementar “Gaiman: do terror ao infantil”.

testeLeia um trecho exclusivo de “A química”, de Stephenie Meyer

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A espera está acabando! Em apenas quinze dias, os leitores poderão ler o primeiro romance inteiramente inédito da autora da série Crepúsculo desde A hospedeira. Em A química, acompanhamos uma ex-agente do governo que está cansada de fugir de seus antigos empregadores, até que um ex-colega entra em contato com a promessa de liberdade que ela tanto espera.

Leia um trecho exclusivo da obra abaixo:

 

“Do outro lado da rua ficava o restaurante onde Carston costumava almoçar. Não era o local de encontro que ela havia sugerido. Ela também estava cinco dias adiantada.

Aproximou-se por trás, tomando o mesmo caminho que ele percorrera alguns minutos antes. A comida havia chegado — sanduíche de frango à parmegiana —, e ele parecia completamente concentrado em degustá-la. Mas ela sabia que Carston era melhor do que ela em aparentar algo que não era.

Sem alarde, ela se deixou cair na cadeira do outro lado da mesa. A boca de Carston estava cheia quando ele levantou o olhar.

Ela sabia que Carston era um bom ator e presumiu que ele encobriria sua verdadeira reação e exibiria a emoção que quisesse antes que ela pudesse capturar a primeira. Como ele não demonstrou nenhuma surpresa, ela chegou à conclusão de que fora apanhado totalmente desprevenido. Se ele estivesse esperando por ela, teria agido como se aquela aparição súbita o tivesse chocado. Mas o olhar firme do outro lado da mesa, os olhos que não se arregalaram, o mastigar metódico — isso era Carston controlando sua surpresa. Ela tinha quase oitenta por cento de certeza.

Ela não disse nada. Apenas retribuiu o olhar inexpressivo enquanto ele terminava de mastigar o naco do sanduíche.

— Imagino que teria sido fácil demais se simplesmente nos encontrássemos conforme o planejado — disse ele.

— Fácil demais para o seu atirador, sem dúvida. — Ela proferiu as palavras de modo suave, usando o mesmo tom de voz que ele. Qualquer pessoa que ouvisse a conversa por acaso pensaria que se tratava de uma piada. Mas, nas duas outras mesas ocupadas, todos conversavam e riam alto, e os pedestres que passavam nas calçadas tinham os ouvidos tapados por fones de ouvido ou telefones. Ninguém se importava com o que ela estava falando, exceto Carston.

— Isso nunca veio de mim, Juliana. Você deve saber disso.

Foi a vez dela de não demonstrar surpresa. Fazia tanto tempo desde que alguém se dirigira a ela por seu nome verdadeiro que ele passara a soar como o nome de uma estranha. Após o choque inicial, uma suave onda de prazer emergiu. Era bom que o nome dela soasse estranho aos seus ouvidos — significava que ela estava agindo corretamente.

Os olhos de Carston piscaram ao ver a evidente peruca. Na verdade, era bem parecida com o cabelo verdadeiro dela, mas agora ele suspeitava que ela estivesse escondendo algo bem diferente. Em seguida, ele se forçou a voltar a olhá-la nos olhos. Esperou por uma resposta durante mais um instante. Diante do silêncio dela, porém, continuou a falar, escolhendo as palavras com cautela.

— Os, ahn, grupos que decidiram que você deveria… se aposentar acabaram… caindo em desgraça. Nunca foi uma decisão popular, para começo de conversa, e agora aqueles de nós que sempre discordaram deles, como eu, não são mais comandados por aqueles grupos. — Podia ser verdade. Era provável que não fosse. Ele respondeu ao ceticismo estampado nos olhos dela: — Você passou por alguma… perturbação desagradável nos últimos nove meses?

— E aqui estava eu pensando que tinha ficado melhor do que você nessa brincadeira de esconde-esconde.

— Acabou, Julie. O poder foi sobrepujado pela justiça.

— Adoro um final feliz.

Sarcasmo puro.

Ele piscou, magoado pelo sarcasmo. Ou fingindo estar magoado.

— Não tão feliz assim — falou, lentamente. — Um final feliz significaria que eu não teria entrado em contato com você. Você teria sido deixada em paz pelo resto da vida. E teria sido uma longa vida, pelo menos no que estivesse ao nosso alcance.

Ela assentiu, como se acreditasse. No passado, sempre presumira que Carston era exatamente o que aparentava. Ele havia sido o rosto dos mocinhos por muito tempo. Agora, tentar decifrar o que cada palavra significava de fato chegava a ser uma diversão esquisita, como um jogo.

Exceto pelo fato de que havia aquela vozinha que perguntava: E se não for um jogo? E se agora for verdade… se eu puder me libertar?

— Você era a melhor, Juliana.

— O Dr. Barnaby era o melhor.

— Sei que você não vai querer ouvir isso, mas ele nunca teve o seu talento.

— Obrigada. — Ele ergueu as sobrancelhas. — Não pelo elogio. Obrigada por não tentar me dizer que a morte dele foi um acidente — explicou ela, tudo isso ainda em um tom descontraído.

— Foi uma decisão errada motivada pela paranoia e pela deslealdade. Uma pessoa capaz de se livrar do próprio parceiro por interesse sempre acha que o parceiro planeja o mesmo. Gente desonesta não acredita que exista gente honesta.

Ela manteve o rosto impassível como pedra enquanto ele falava.

Nos três anos de fuga constante, ela nunca repassara um único segredo de que tivesse conhecimento. Nem uma única vez dera a quem estivesse atrás dela qualquer motivo para considerá-la uma traidora. Mesmo quando tentaram matá-la, ela permaneceu leal. E isso não tinha sido levado em conta pelo seu departamento, de jeito nenhum.

Não havia muita coisa que eles levassem em conta. Ela divagou por um instante recordando como tinha chegado perto daquilo que procurava, o ponto que ela poderia ter atingido em sua linha de pesquisa e criação mais premente se não tivesse sido interrompida. Aparentemente, aquele projeto também não tinha sido levado em conta.

— Mas quem se deu mal foram eles, aqueles traidores — continuou Carston. — Porque nunca encontramos ninguém tão bom quanto você. Que inferno, nunca encontramos ninguém com a metade do talento do Barnaby. Fico impressionado com a capacidade que as pessoas têm de esquecer o fato de que talento genuíno é um bem limitado.

Ele fez uma pausa, claramente na expectativa de que ela falasse, pedisse algo, traísse algum sinal de interesse. Ela apenas o encarou educadamente, da maneira como alguém olharia para um estranho passando suas compras em uma caixa registradora.

Ele soltou um suspiro e depois se inclinou, com uma súbita intensidade.

— Temos um problema. Precisamos do tipo de resposta que só você pode nos dar. Não temos mais ninguém que possa fazer esse trabalho. E nós não podemos arruinar esse trabalho.

— Vocês, não nós — disse ela.

— Sei que você não é assim, Juliana. Você se importa com pessoas inocentes.

— Eu me importava. Pode-se dizer que essa parte de mim foi assassinada.

Carston se retraiu de novo.

— Juliana, sinto muito. Sempre senti muito por tudo isso. Tentei detê-los. Fiquei muito aliviado quando você escorregou por entre os dedos deles. Toda vez que você escorregou por entre os dedos deles.

Ela não pôde deixar de ficar impressionada com o fato de ele admitir tudo. Sem negações, sem desculpas. Nada do tipo Foi apenas um acidente infeliz no laboratório, como ela esperava. Nada de Não fomos nós; foram os inimigos do governo. Nenhuma história, apenas reconhecimento.

E agora todo mundo sente muito. — A voz dele baixou, e ela teve que se esforçar para entender as palavras. — Porque não temos você, Juliana, e pessoas vão morrer. Milhares de pessoas. Centenas de milhares.

Dessa vez ele esperou enquanto ela refletia.

Ela também falou baixo, mas se assegurou de não transparecer interesse ou emoção na voz.

— Estamos falando do pior, não é?

Um suspiro.

Nada estimulava tanto o departamento quanto o terrorismo. Ela tinha sido recrutada antes que a poeira emocional baixasse completamente em torno do buraco onde as Torres Gêmeas ficavam. A prevenção ao terrorismo sempre tinha sido o principal componente do trabalho dela, a melhor justificativa para ele. A ameaça do terrorismo também fora manipulada, transformada e distorcida, até que, no final, ela havia perdido grande parte da crença na ideia de que estava de fato cumprindo o papel de uma patriota.

— E um grande dispositivo — disse ela, afirmando, não perguntando.

O maior bicho-papão era sempre este: que alguém que odiava os Estados Unidos conseguisse pôr as mãos em alguma coisa nuclear. Essa era a nuvem escura que escondia a profissão dela dos olhos do mundo, que a tornava tão indispensável, por mais que o cidadão comum preferisse pensar que ela não existia.

E acontecera, mais de uma vez. Gente como ela havia evitado que tais situações se transformassem em tragédias humanas de grandes proporções. Havia um mecanismo de compensação. Horror em baixa escala contra carnificina por atacado.

Carston balançou a cabeça, e de repente seus olhos claros demonstraram medo. Ela não conseguiu controlar um ligeiro tremor interno quando percebeu do que se tratava. Havia somente dois tipos de medo daquela magnitude.

É biológico. Ela não enunciou as palavras, só mexeu os lábios.

A expressão sombria de Carston serviu como resposta.

Ela baixou os olhos por um instante, repassando todas as respostas dele e reduzindo-as a duas colunas, duas listas de possibilidades em sua cabeça. Coluna um: Carston era um mentiroso talentoso que estava dizendo coisas que pensava que a motivariam a visitar um lugar onde as pessoas estavam muito bem preparadas para descartar Juliana Fortis para sempre. Ele estava dançando conforme a música, tocando nos pontos mais sensíveis de Juliana.

Coluna dois: Alguém tinha uma arma biológica de destruição em massa e as autoridades competentes não sabiam onde ela estaria nem quando seria usada. Mas conheciam alguém que sabia.

A vaidade recebeu um certo peso, fazendo a balança pender ligeiramente para um dos lados. Ela sabia que era boa. Era verdade que eles provavelmente não tinham encontrado alguém melhor.

Ainda assim, ela apostaria na coluna um.

— Jules, não quero ver você morta — disse ele com calma, imaginando o que passava pela cabeça dela. — Eu não teria entrado em contato com você se quisesse. Eu não ia querer me encontrar com você. Porque tenho certeza de que, neste exato momento, você dispõe de pelo menos seis maneiras de me matar e de todos os pretextos do mundo para usar uma delas.

— Você realmente acha que eu viria com apenas seis? — perguntou ela.

Ele franziu a testa nervosamente por um segundo, depois decidiu rir.

— Exato. Não tenho desejo de matar, Jules. Estou sendo franco.

Ele retomou a voz descontraída.

— Eu preferiria que você me chamasse de Dra. Fortis. Acho que já passamos da fase dos apelidos.

Ele fez uma expressão magoada.

— Não estou pedindo que me perdoe. Eu devia ter feito mais — disse ele. Ela aquiesceu, apesar de, mais uma vez, não estar concordando com ele apenas mantendo a conversa. — Estou pedindo que você me ajude. Não, não a mim. Ajude as pessoas inocentes que vão morrer se você não ajudar.

— Se elas morrerem, não vai ser por culpa minha.

— Sei disso, Ju… Doutora. Será culpa minha. Mas, na verdade, essas pessoas não vão se preocupar em apontar culpados. Estarão todas mortas.

Ela manteve o olhar fixo nele. Não seria ela a piscar.

A expressão dele mudou para algo mais sombrio.

— Você gostaria de ouvir o que vai acontecer com essas pessoas?

— Não.

— Talvez seja demais até mesmo para o seu estômago.

— Duvido muito. Mas não importa. O que poderia acontecer é secundário.

— Queria saber o que é mais importante do que centenas de milhares de vidas.

— Isto vai parecer terrivelmente egoísta, mas, para mim, o fato de respirar tem meio que sobrepujado qualquer outra coisa.

— Você não poderá nos ajudar se morrer — disse Carston, objetivamente. — A lição foi aprendida. Esta não será a última vez que vamos precisar de você. Não vamos cometer o mesmo erro de novo.

Ela detestava admitir, mas a balança estava começando a pender ainda mais para um dos lados. O que Carston dizia fazia sentido mesmo. Ela certamente conhecia mudanças de diretrizes. E se fosse tudo verdade? Ela podia se fazer de fria, mas Carston a conhecia bem. Ela teria dificuldades em permitir um desastre dessa magnitude se pensasse que havia uma chance de fazer algo. Tinha sido assim que, no começo, eles a haviam atraído para a pior profissão do mundo.”

testeSOBRE POEMAS E GIRAFAS

colunavisitaescola

A convite da coordenadora pedagógica Camila Asato, visitei a escola EMEB Vital Brasil, em São Bernardo do Campo, São Paulo, com um desafio para lá de fascinante: falar de poesia para uma plateia que ainda não sabe o que é poesia. Melhor dizendo: falar de poesia para uma plateia que ainda não sabe que sabe o que é poesia.

Minha dúvida, ao preparar essa oficina, era saber como prender a atenção dessa audiência – pequena em tamanho físico, mas infinita em medida de alma – já que a minha poesia envolve a dobradinha grafia-sonoridade e, muitas vezes, faz brincadeiras com palavras que possibilitam incontáveis caminhos interpretativos. São muitas exigências para uma criança ainda em processo de alfabetização.

A simplicidade criativa sempre norteou os meus caminhos poéticos, ilustrativos. Sempre busquei soluções mais acessíveis – não fáceis – na hora de criar o meu universo. Longe da preguiça de ir além, é que, pra mim, ser simples é o meu além. A simplicidade é o destino dos meus traços e das minhas letras. Quero que todos possam ter a capacidade de fazer o máximo com o mínimo de custo e material. No caso da oficina, foi disponibilizado a cada um dos 50 alunos um filtro de café e uma caneta preta. Com isso, essas crianças conseguiram filtrar seus sonhos, suas ideias, seus silêncios… Enfim: soltar a imaginação.

Aí me lembrei da minha história. Quando tinha a idade deles, a poesia me assustava. Era um daqueles monstros que vivia embaixo da cama. Nossos pais, na verdade, nos contam histórias antes de dormir para afastar esses monstrinhos. Monstrinhos não gostam de delicadeza. A literatura é uma delicadeza. Sempre que você se sentir inseguro, mergulhe na sua origem. É a única forma de não trair a sua originalidade criativa.

Desde pequeno, eu ficava admirado com as girafas. Um animal que muitos viam apenas em zoológico, eu tive a oportunidade de ver em liberdade no Parque Nacional de Iaundê, em Camarões (África). No reino dos animais, o leão pode até ser rei, mas a girafa é poeta. Suas manchas são reservas de tinta que o pescoço, esse lápis amarelo e gigantesco, usa para rabiscar e viver com cabeça mergulhada nas nuvens: o mundo da inspiração. Sua língua, a ponta, aponta para as folhas dos galhos mais altos. Uma árvore é uma coletânea de poemas à espera da nossa sensibilidade. Suas folhas alimentam o mundo. A girafa, assim como poeta, se alimenta não só DO que escreve, mas também NO que escreve.

Yasmim que, por coincidência, vestia uma blusinha rosa com uma girafa estampada, poderia ser um livro de humor a la Luis Fernando Veríssimo. Eduardo, com seu talento raro, me fez pensar em uma publicação ilustrada com capa dura, quem sabe um novo Maurício de Sousa. A ternura de Carlinha me lembra uma crônica do Rubem Braga. Ou um poema do Manoel de Barros. O pequeno Murilo, curioso que só, tem tudo para ser um conto inédito do Murakami. Econômico nas palavras, um haicai cairia bem ao Pedrinho – meu xará no nome e na timidez. Todos representavam de alguma forma um gênero literário. E é isso que somos. Alguns são romances, outros são poemas, versos livres, crônicas ou contos. Outros são silêncios. Precisamos dessa pluralidade de conexões para que a linguagem se mantenha viva, jovem e terna. Logo: eterna!

O aluno mais velho naquela sala devia ter, no máximo, 6 anos. Alguns, ainda mais jovens – se é que se pode ser mais jovem que um ser humaninho de 6 anos – já tinham imaginação de sobra para soltar frases maduras. Outros, mais ambientados com as letrinhas do alfabeto, já sabiam escrever o próprio nome com aquela caligrafia tremida, fofa e inconfundível: a tipografia da infância.  Eu queria poder escrever feito criança para sempre!

Não lembro quando escrevi Pedro pela primeira vez, mas meus desenhos mais antigos revelam que eu já carregava em mim um traço mais puxado para o mundo das artes. Assinava a letra E do meu nome com dezenas de perninhas. Naquele momento, a letra deixava de ser comum e passava a ser também ilustração. Uma escadinha que, naquele momento, inconscientemente, me levava ao aprendizado. A minha poesia começou naquele instante.

Entrar no universo dessas crianças me fez ganhar tudo o que eu achava ter perdido ao longo do tempo, quando comecei a ter responsabilidade de gente grande, como dizem. Estar ao lado desses pequenos me fez crer, me fez ser, me fez crescer. Me fez ser de novo um menino, com a cabeça cheia de imaginação. Me fez crer que, no fundo, são elas que falavam de poesia comigo. Deixei de ser falante, passei a ser ouvinte. A linguagem da ingenuidade é a poesia em estado vivo. A ausência de preconceito impulsiona a liberdade criativa. A inexistência de fronteiras para se expressar proporciona o contato com o infinito. Para elas, o papel não rasga, quebra. Quando mostrei o mar, eles viram a neve, a montanha, a lua. As crianças chegam ao espaço muito mais rápido do que o mais avançado satélite da Nasa. Talvez elas ainda não saibam o que seja poesia. A gente nunca sabe o que a gente é. Mas afirmo: elas são poesia. Elas são poesia. Elas são poesia.