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O que gera a desigualdade?

29 / novembro / 2016

Conheça os tópicos centrais de O capital no século XXI, obra de Thomas Piketty

Rennan da Rocha *

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[Fonte: Social Europe]

Há dois anos, O capital no século XXI emergia no Brasil como o mais improvável dos best-sellers. Lançado com pouco destaque na França em 2013, a obra de Thomas Piketty causou grande repercussão no ano seguinte graças à tradução para o inglês. Em poucos meses vieram edições em diversas línguas — como a publicada pela Intrínseca em novembro de 2014, traduzida pela economista Monica Baumgarten de Bolle —, o que transformou o texto em fenômeno global.

De uma hora para outra, todos pareciam estar lendo e discutindo a mais importante obra do professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Façanha notável para um tratado econômico de mais de 600 páginas que discorre sobre o aumento da desigualdade global e cujo título faz referência direta a Karl Marx. Além das virtudes de um texto didático e elegante, o sucesso da obra de Piketty se deve sobretudo à situação do mundo que o lia: deprimido pelo colapso financeiro de 2008, chacoalhado por movimentos como o Occupy Wall Street e escandalizado pelo poder e pela riqueza detidos pelo 1% mais rico da população. Como afirmou o Nobel de Economia Paul Krugman na New York Review of Books, “O capital no século XXI mudará tanto a forma como pensamos a sociedade quanto como praticamos economia.”

Confira alguns dos tópicos centrais sobre esse divisor de águas no debate do pensamento econômico contemporâneo.
 

Do que fala O capital no século XXI?

O livro reconstitui a evolução da distribuição de renda e de riqueza nos últimos duzentos anos, sobretudo em países desenvolvidos, onde há mais dados disponíveis, como Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha. A obra não menciona o Brasil, pois Piketty e seus colaboradores não conseguiram convencer a Receita Federal a divulgar dados anônimos sobre os contribuintes daqui.

A partir dessa análise, o autor conclui que a desigualdade tem crescido em ritmo acelerado nas últimas décadas. Nos Estados Unidos, por exemplo, os 10% mais ricos abocanharam praticamente metade da renda distribuída no país entre 2000 e 2010, contra uma parcela abaixo de 35% na década de 1970. Mas Piketty ressalta que não se trata apenas de um fenômeno de desigualdade salarial, exposta pelos bônus nababescos de banqueiros e CEOs na chamada “Corporate America”. O avanço da renda extraída do capital é muito mais acelerado do que o dos salários, e essa riqueza está sendo distribuída de forma cada vez mais desigual. Na França, por exemplo, 70% da riqueza disponível hoje foi herdada, em oposição a menos de 50% em 1970.  

 

Como a pesquisa para o livro foi feita? 

O principal diferencial da obra é o método de investigação usado para entender como se dava a distribuição de riquezas séculos atrás. Piketty e seus colaboradores, economistas como Anthony Atkinson e Emmanuel Saez, foram pioneiros na combinação de informações de declarações de imposto de renda com outros tipos de dados para estudar a desigualdade. A utilização de informações tributárias permitiu a Piketty analisar a concentração de riquezas nas mãos de um número muito restrito de pessoas (o 1% ou até o 0,1% mais rico a população, por exemplo) que acabava ignorado em pesquisas tradicionais.

Como cereja do bolo, O capital no século XXI também recupera no cânone literário vestígios de uma desigualdade ancestral. “Os romances de Jane Austen e de Honoré de Balzac nos oferecem um retrato impressionante da distribuição da riqueza no Reino Unido e na França de 1790 a 1830. Os dois escritores possuíam um conhecimento íntimo da hierarquia da riqueza em suas sociedades”, observa o autor. 

 

O que gera a desigualdade?

A análise histórica dos dados permitiu a Piketty desenvolver a teoria que é central em seu livro. Segundo ele, a acumulação de riquezas é resultado da relação entre a taxa de remuneração do capital (como o lucro obtido por uma empresa ou o aluguel de um imóvel) e o crescimento econômico. Quando o retorno do capital é maior do que, digamos, a expansão do PIB, a riqueza herdada cresce mais rápido que o surgimento de patrimônio novo, pronto para ir para as mãos de outras pessoas.

“Basta então aos herdeiros poupar uma parte limitada da renda de seu capital para que ele cresça mais rápido do que a economia como um todo. Sob essas condições, é quase inevitável que a fortuna herdada supere a riqueza constituída durante uma vida de trabalho e que a concentração do capital atinja níveis muito altos, potencialmente incompatíveis com os valores meritocráticos e os princípios de justiça social que estão na base de nossa sociedade democrática moderna”, explica o livro, que resume essa dinâmica em outro trecho: “Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro.”

A análise de Piketty apresenta que, desde 1700, o retorno sobre capital tem sido de 4% ou 5% — ou seja, quem investe R$100 costuma lucrar de R$4 a R$5 em um ano. Durante os séculos XVIII e XIX, esse ritmo foi muito maior do que o crescimento econômico. Por isso, esses períodos foram tão marcados pela desigualdade, como mostra o estilo de vida dos personagens de Jane Austen. A industrialização proporcionou maior crescimento produtivo e de renda para os trabalhadores, mas não foi capaz de reequilibrar a equação da desigualdade.

A situação melhora, ironicamente, com as duas guerras mundiais e a Grande Depressão, que, além de estimular a produção, aniquilaram uma parcela significativa da riqueza que estava pronta para ser herdada. Pense, por exemplo, no destino que os imóveis da Berlim nazista teria. A reconstrução europeia no pós-guerra e a adoção de medidas fiscais extremas para financiar esse esforço proporcionaram os chamados Trinta Gloriosos. Nesse ciclo inédito de prosperidade, a geração de novas riquezas foi maior do que o retorno sobre o capital já existente. Por isso, a desigualdade diminuiu no período de 1945 a 1975, argumenta Piketty.     

 

Por que a desigualdade está aumentando hoje?

De acordo com a teoria de Piketty, um rápido crescimento é essencial para frear uma acumulação desigual de riquezas. O problema é que o mundo enfrenta hoje um período de baixo crescimento, não só por causa da crise recente mas também por razões como a estagnação populacional e a ausência de novos saltos tecnológico de produtividade semelhantes aos proporcionados por adventos como a eletricidade ou a linha de montagem. O resultado disso, segundo Piketty, é a volta a um capitalismo patrimonial, com níveis de desigualdade próximos daqueles da Belle Époque europeia e no qual a meritocracia é suplantada, pouco a pouco, por uma dinastia de poucos herdeiros. 

 

O que Piketty propõe para resolver esse problema?

A teoria do economista francês implica uma ideia indigesta (e daí a polêmica envolvendo o livro) para os defensores da famosa “mão invisível” dos mercados: nos últimos séculos, o capitalismo liberal estimulou, salvo em poucos períodos excepcionais, uma concentração desigual de riquezas. A manutenção das democracias, das classes médias e do bem-estar social depende, então, de intervenções que corrijam esse processo. A principal proposta de Piketty é a criação de um imposto global e progressivo sobre capital, a ser implementado por vários países em um esforço coordenado. Ele propõe que as alíquotas iriam de 0,1% a, no máximo, 10% (para fortunas bilionárias, por exemplo). 

“Com ele, é possível evitar a espiral desigualadora sem fim e ao mesmo tempo preservar as forças da concorrência e os incentivos para que novas acumulações primitivas se produzam sem cessar”, concluiu o economista. 

Alguns anos após o lançamento de O capital no século XXI, o argumento de Piketty ganha novo impulso no momento em que um herdeiro bilionário, que observa o mundo do alto do 58º andar de um arranha-céu na Fifth Avenue, se instala no posto que deveria representar o ápice da democracia.    

 

Rennan da Rocha é jornalista.

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