Fernando Scheller

No saguão do aeroporto, um homem carrega um livro

10 / agosto / 2016

O livro que ele carrega capta minha atenção no saguão de bagagens. A capa está ali, vermelha, como não via há anos. Será que ele encontrou essa edição antiga no fundo de um baú, perdida em meio a memórias do passado? Me pergunto se ele lê a história pela primeira vez, mas vejo o aspecto meio gasto de seu exemplar e me convenço de que se trata de um reencontro.

Ele agarra sua mala na esteira mantendo o livro bem seguro em uma das mãos, como se este fosse um ponto que lhe mantivesse o equilíbrio. Aos poucos relembro a trama do romance, um tênue fio narrativo esquecido por décadas. Um amor perdido, um homem revisitando sem parar um momento do passado. Tentando, em vão, mudar um desfecho já definido.

Não consigo tirar os olhos das mãos dele, não posso. Me pergunto se ele percebe o efeito que aquele livro tem sobre mim. Por que ele resolveu tirar a poeira dessa história justamente agora? Estaria, ele próprio, pensando em um amor do passado? Teria vindo aqui para retomá-lo ou apenas fitá-lo de longe, como o personagem principal da narrativa?

Ele se afasta e, ao mesmo tempo que o acompanho de longe, vejo que minha bagagem se aproxima na esteira. Temos mais ou menos a mesma idade, então é impossível que este seja seu primeiro contato com este livro antigo. Não me lembro de uma edição mais recente. O personagem passeia por um parque de diversões decadente numa cidadezinha que quase sumiu do mapa após o fechamento de uma fábrica.

Decido segui-lo. Ele passa, calmo, pela multidão que espera entes queridos no aeroporto. É algo comum nesse período de férias de inverno: cartazes ora espirituosos, ora cafonas, pais que esperam filhos, filhos que esperam pais, amigos que consolam amigos, um namoro recente que se consolida. Livro na mão, ele desvia, um ponto dissonante nessa confluência de alegrias. Busca algo que parece inalcançável, como nosso protagonista.

Encaminha-se para a fila de táxis e eu vou atrás. Não sei como vou descobrir seu destino, não tenho como adivinhar aonde esse desconhecido vai. Todos os táxis são iguais, e quando ele entrar em um deles minha busca chegará ao fim. Quero  segui-lo só mais um pouco. Um relâmpago cruza o céu. O protagonista avista, no parque de diversões, seu amor de infância, a tempo de vê-la abraçar um tipo parecido com Stanley Kowalski. Seu marido?

Sem aviso prévio, aquele desconhecido sai da fila de táxi e  volta ao saguão, livro ainda em punho. Tenho de me apressar para não perdê-lo de vista. Perto, mas não perto demais, consigo vê-lo perfeitamente. Alto, delgado, elegante, ele pousa a mala de couro no chão. Agacha-se para reforçar o laço do cadarço dos sapatos.

Pousa o livro com calma também no chão antes de levantar-se devagar. Casual, como o herói que recheia as páginas com oportunidades nunca levadas a cabo – em frente à banca de tiro ao alvo, seu antigo amor, agora mulher feita e loura platinada, parece olhá-lo com curiosidade. Ele, porém, não reúne forças para dizer algo. Naquele saguão cheio de gente impaciente, o livro fica ali, solitário, no meio do caminho. Corro para resgatá-lo.

Chego mais perto e fico ao lado daquele ponto de vermelho de capa dura, perto o bastante para evitar que as pessoas o pisoteiem. Lembro-me de uma passagem, já próxima do fim, em que aquele tipo infeliz se encanta com as cores das lâmpadas da roda-gigante e se emociona com o tímido show de fogos que o parque realiza pouco antes da hora do fechamento.

O dono do livro, já próximo à porta de saída, vira-se e olha diretamente para mim. Ele sorri. Acho-o bonito, mas não como a maioria das pessoas. Sai pela porta de vidro e, pelo lado de fora, começa a fazer o caminho de volta para o fim da fila dos táxis. Eu me ajoelho devagar e sinto o calor das mãos dele no – agora meu – exemplar.

Folheio rapidamente, como se naquelas palavras conhecidas residisse um segredo. Permaneço um bom tempo na mesma posição e percebo três passagens sublinhadas. Atitudes que o herói se propõe a tomar e não consegue. “Tudo o que você pensar, faça o contrário.” “Telefone para a primeira pessoa que lhe vier à mente.” “O que você faria se um estranho lhe pedisse ajuda com os olhos?”

 

Comentários

Uma resposta para “No saguão do aeroporto, um homem carrega um livro

  1. perfeito ADOREI E COMPARTILHEI COM 100 PESSOAS DE mARINGÁ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *