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As vantagens de “ficar para titia”

6 / julho / 2016

Por Julia Wähmann*

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(fonte)

Quase toda família, tradicional ou não, tem em seu elenco a “tia solteirona”. Ela é aquela que não se casou, não teve filhos, e que provavelmente passou a vida escutando dos avós, tios e primos a pergunta mais temida por todas as mulheres que chegam sozinhas — ou ao menos sem a lacuna “casada” preenchida em formulários que pedem informações sobre estado civil — a celebrações de Páscoa, Natal ou a qualquer almoço de domingo: “Mas como você ainda está sozinha?” Estão implícitas certa pena, desconfiança e a constatação de que, em algum nível, determinados status de relacionamento são uma sentença de fracasso. Se você é ou está prestes a se tornar a solteirona da família, ou se de alguma maneira já se percebe como depositária dessa herança, então precisa conhecer Kate Bolick.

Jornalista e editora americana, Bolick despertou em mim empatia imediata, assim como Bridget Jones o fez, mais de uma década atrás. Se a britânica e atrapalhada Bridget — lutando contra os quilos a mais e desafinando em frente à TV em um pijama ridículo num sofá soterrado por lenços de papel e vodca — é a personagem fictícia que deu a mão a várias mulheres solteiras, Bolick é uma figura real que repete o gesto através de Solteirona: O direito de escolher a própria vida, seu primeiro livro.

capasolteironagrandeEla começa por esclarecer as origens do termo solteirona, ou spinster, em inglês: na Europa do século XV, o termo era usado para descrever as tecelãs não casadas. O ofício era um dos poucos destinados às mulheres que impunha respeito, e a partir do século XVII outras mulheres que não exerciam a profissão também passaram a ser chamadas, honrosamente, de spinsters. É na América Colonial que a designação muda de tom e que a palavra solteirona começa a soar pejorativa e ofensiva. Atualmente, boa parte dos dicionários americanos reconhece o caráter depreciativo do termo. Ao resgatar a etimologia da palavra, Kate Bolick já estabelece que não há por que se envergonhar de pertencer a esse grupo.

O caminho literário de Kate foi marcado por cinco escritoras, sendo a mais velha nascida em 1860 e a mais nova em 1917, que ela considera suas “despertadoras”. Neith Boyce, Maeve Brennan, Charlotte Perkins Gilman, Edna St Vincent Millay e Edith Wharton deixaram obras em prosa e verso, inspiraram movimentos feministas e tiveram vidas que jamais poderiam ser definidas ou regidas por um casamento, ainda que algumas delas tenham sido casadas. As “despertadoras” são pontos de partida para que Kate desenvolva uma pesquisa mais ampla sobre o casamento no decorrer dos séculos XIX e XX e sobre como a instituição trata os gêneros masculino e feminino com uma diferença que acaba por atuar como uma sentença cruel para o segundo.

A partir da década de 1950, as mulheres solteiras começam a ser mais duramente estigmatizadas e passam a constituir uma dentre diversas outras minorias. Kate observa algumas possíveis categorias para elas. Amo o fato de que a Estátua da Liberdade é citada como exemplo do modelo de solteirona “abnegada” (assim como adoro a observação de Kate a respeito do poliéster inflamável de que são feitas as fantasias de princesas para crianças, e o livro está repleto desses trechos de humor sutil e afiado).

Entre as “excêntricas adoráveis”, rol em que provavelmente também transita a “louca dos gatos”, está Mary Poppins. A Mulher Maravilha e Joana d’Arc são reconhecidamente as “poderosas”. Independentemente do rótulo, a solteirona é com frequência vista como uma anomalia, afinal desde cedo as mulheres aprendem que ter um marido é tão natural quanto possuir dentes. Parecia antinatural, portanto, que Kate evitasse o casamento, mesmo quando estava seriamente envolvida com candidatos ideais e portadores de excelentes credenciais.

Ao revelar a própria trajetória profissional em paralelo a suas histórias afetivas, Kate recorre às “despertadoras”, cujas biografias pouco atenderam às expectativas convencionais de épocas distintas, e mostra como os padrões culturais e sociais de comportamento aprisionaram e ainda aprisionam mulheres que não compartilham dos sonhos da maioria. A certa altura do livro, ela afirma que “quase toda escritora que conheço teve de decidir em algum ponto se aceitaria um trabalho para escrever sobre sua vida afetiva, um dilema que quase nunca é apresentado aos homens”. As imposições de um pensamento arraigado em valores machistas e patriarcais atuam com a mesma violência com que os espartilhos machucavam os corpos das mulheres, levando-as a acreditar que o problema está nelas mesmas, e não nas pressões externas.

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Felizmente, ao optar por retraçar o próprio caminho, Kate o faz com o objetivo de desmistificar as lendas, dosando memórias e experiências pessoais com uma pesquisa de grande relevância para se pensar o lugar da mulher hoje. Gosto muito da passagem em que ela mostra como uma maior autonomia pode ser enriquecedora, e como o estilo de vida de uma solteira pode ser bem mais complexo e interessante do que parece: “Ser solteira é como ser artista, não porque criar uma vida de solteira funcional seja uma arte, mas porque requer a mesma atenção detalhada às necessidades singulares da pessoa, além de vontade e foco para supri-las. Assim como a artista ajusta sua vida em torno da criatividade, sacrificando confortos convencionais e até aceitação social, sono e alimentação de acordo com seus próprios ritmos (…), uma pessoa solteira precisa pensar muito para decifrar o que a deixa mais feliz e satisfeita. Estudos mostram que uma mulher que vive sozinha tem mais probabilidade de ter uma vida social ativa e de manter laços familiares do que suas colegas casadas, não apenas porque ela tem mais tempo à disposição, mas porque são exatamente esses laços que a sustentam.” Não se trata de defender uma existência autocentrada ou reclusa, ao contrário. Trata-se de buscar um autoconhecimento a fim de estabelecer relações (de qualquer natureza) mais sólidas.

Além disso, o livro é uma bela homenagem  às “despertadoras” (de quem quero ler absolutamente tudo), e pode ser interpretado como uma tradução precisa da ideia de sororidade, termo bastante presente em artigos e estudos que tratam de feminismo. Como leitora, me senti convidada a conhecer as obras dessas autoras quase como se fizesse parte de um clube de leitura, de um coro de vozes.

Já faz anos que, em um jantar com casais de amigos em que eu era a única solteira — e por diversas razões venho reafirmando essa escolha —, um dos rapazes fez a piada corriqueira, até por saber do meu gosto por animais de estimação, dizendo que no futuro eles iriam me visitar numa casa espaçosa habitada por muitos gatos. Respondi dizendo que os felinos me dão alergia, e que ficava feliz de ele achar que seria bem-sucedida o suficiente para ter um imóvel que pudesse abrigar uma porção de cachorros. Hoje rimos da história. Meu exemplar de Solteirona, marcado com post-its e dobras, ganhou um lugar especial na estante, colado ao Diário de Bridget Jones, minha solteirona ficcional preferida que, tenho certeza, teria muito o que conversar com Kate.

>> Leia um trecho de Solteirona: O direito de escolher a própria vida

 

Julia Wähmann é escritora. Em 2015 publicou Diário de Moscou (Megamíni/7 Letras) e André quer transar (Pipoca Press). Em 2016 publica Cravos (Record, no prelo).

Comentários

3 Respostas para “As vantagens de “ficar para titia”

  1. Vou procurar esse livro nas prateleiras. Gostei da análise!

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