Fernando Scheller

Verões emocionais

30 / junho / 2016

18 de janeiro de 1985, Rio de Janeiro. Segundo e último show do Queen. Como havia chovido muito nos dias anteriores, a estradinha de terra para a Barra da Tijuca ficara esburacada e o ônibus balançava sem parar. Lauro vomitou pela janela. Não foi o único. Todo mundo estava meio doido, carregando garrafas de Smirnoff (a turma dos ricos) e de Velho Barreiro (a nossa, dos pobres). A diferença é que Lauro, que me ensinara a beber, não dera sequer um gole. Quando chegamos à Cidade do Rock, não sei se estávamos ansiosos para ver o Freddie Mercury ou só aliviados porque aquela viagem — que fedia a comida velha, bebida barata, suor e lama — terminara.

O calor infernal de verão, as chuvas incessantes — que finalmente haviam dado uma trégua, o que só podia ser uma pequena prova da existência de Deus — e minha excitação por termos conseguido os ingressos para o festival pareciam ter feito com que eu e Lauro trocássemos de corpo. O amigo que me tirara de uma vida de morno torpor e me jogara num grande verão emocional nos últimos dois anos se calara. Já eu estava eufórico; uma gana de vida havia tomado conta de mim e parecia que jamais se esgotaria. Íamos ver Freddie Mercury. Lauro não aceitou quando me ofereci para lhe pagar um sanduíche nem quis um copo de Limão Brahma.

Eram 250 mil pessoas. Eu acabara de completar vinte e um anos e tinha um metro e sessenta e sete. Ainda não sabia, mas cresceria muito, em todos os sentidos, ao longo daquele ano. Haveria dias intermináveis e cruéis e eu rezaria para que eles terminassem, só para, bem mais tarde, desejar tê-los de volta. Todo verão acaba um dia. Enquanto eu me lamentava por causa da multidão, que provavelmente me impediria de ver o palco, Lauro voltou, por um instante, a ser ele mesmo. Recuperando aquele brilho nos olhos que desaparecera o dia todo, olhou para um andaime alto, com um banner enorme da Malt 90, a cerveja com gosto de mijo, e propôs que subíssemos. Era a nossa chance de termos uma experiência única. Começamos a escalar e nos instalamos, sentados, a uma altura suficiente para sofrer uma queda mortal.

Os seguranças começaram a gritar para que descêssemos e mostramos o dedo do meio para eles. Ficaram por ali para evitar que mais gente resolvesse nos seguir. O som estava alto, e acho que isso foi providencial. Lauro não estava a fim de conversar. Toda vez que eu tentava dizer algo, ele fazia sinal de que não estava me ouvindo. Nos shows em que não estava interessado ou nos intervalos, ele até se deitava entre um andaime e outro, segurando-se pelos ombros e pelos joelhos, como se descansasse.

De repente, assim que os primeiros acordes de “Tear it up” começaram a tocar, todo o nosso ensaio foi recompensado — gritamos as letras do álbum The Works, que havíamos decorado, com toda a força que tínhamos nos pulmões. Pendurados nos andaimes, fazíamos performances de rockstar, na esperança de que Freddie nos avistasse. Muitas vezes, a gente só se dá conta de que alguns momentos foram muitos especiais anos mais tarde, depois que eles passaram. Esse não foi o caso. Fomos extremamente felizes por aquelas duas horas e quinze minutos — tínhamos plena consciência disso.

Ficamos até o bis. Os seguranças já haviam desistido de nós, pois boa parte do público se cansara antes do fim do espetáculo. Descemos com calma de nosso camarote improvisado. Súbito, Lauro perdeu de novo o ânimo. Estava branco, pálido, cansado. Disse apenas que era hora de ir, que devíamos nos apressar. Começou a andar, deixando-me para trás. Reuni coragem, exigi que me esperasse e gritei para ele:

— O que está acontecendo?

Ele me contou, bem ali, no meio daquelas pessoas que esbarravam em nós, trôpegas e felizes, que pareciam puxar pela memória o rumo de casa. O que ele me disse era exatamente o que eu mais temia. Eu queria que ele me dissesse qualquer outra coisa, mas ele falou justamente o que eu esperava ouvir. A diferença entre um negativo e um positivo que transformava tudo, colocava o mundo sob uma nova perspectiva. Sentença, veredicto, sina. Ele olhou para mim e eu simplesmente o abracei, talvez por um minuto inteiro. Então Lauro disse:

— Lembre-se deste momento.

— Vou lembrar — respondi.

— O show das nossas vidas — afirmou.

Meu melhor amigo tinha razão. Aquele havia sido o show das nossas vidas. Não importava se morreríamos amanhã ou dali a sessenta anos.

Comentários

2 Respostas para “Verões emocionais

  1. Oi, Thais! Esse é um texto do autor de “O amor segundo Buenos Aires”.

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