Por Ulisses Teixeira*
Eu tenho bastante sorte por ter três pais.
Deixe-me explicar melhor. Para falar a verdade, é bem simples. Provavelmente muitos tiveram a mesma experiência que eu, ou talvez uma similar. Minha mãe e meu pai se separaram quando eu era um bebê. Quase dois anos depois, minha mãe se casou novamente, e ela também teve a sorte de encontrar um cara legal e decente com quem é casada até hoje. Meu pai não encontrou tão cedo a sua outra “metade da laranja”, de forma que ninguém teve para mim um lugar de “mãe” — além da minha própria, é claro. O cara com quem minha mãe se casou me criou, me ensinou e me influenciou de maneiras que só um verdadeiro pai faria. É por isso que ele merece esse título. (E é por isso também que, neste texto, eu só vou me referir a ele como “pai”, nunca padrasto. Sei que isso pode ser um pouco confuso para alguns de vocês, e peço desculpas desde já.)
O que isso tudo tem a ver com F de falcão? Bem, Helen Macdonald, a autora dessa obra-prima (e, acreditem, não uso essa palavra de forma gratuita), não tem mais o pai. Ele faleceu após um enfarto, daqueles que acontecem sem mais nem menos, sem aviso, sem dar tempo para você se preparar para o pior. Isso, é claro, é o suficiente para deixar qualquer um devastado. Com a autora, não foi diferente. No período de depressão que se seguiu à morte do pai, Macdonald revela em detalhes o que perdeu enquanto não conseguia superar o luto: oportunidades profissionais, dinheiro e até mesmo um relacionamento. Para vencer a inércia emocional, Helen resolve voltar a explorar um antigo hobby que compartilhava com o pai: a falcoaria.
A falcoaria é a antiga arte de criar e treinar certas aves de rapina para a caça. Devido ao seu alto custo, era praticamente restrita aos nobres no mundo antigo e medieval. Apesar do nome, o esporte não lida apenas com falcões; podem ser usados também gaviões, corujas e açores. De fato, é este último que Macdonald escolhe para retomar a prática. Desnecessário dizer que criar um falcão não é como criar um cachorrinho; não basta colocar um jornal no canto da área de serviço e levar para passear duas vezes por dia. Não, criar um falcão é um desafio. E criar um açor é um desafio ainda maior. Um açor é uma ave de rapina de fato, um animal que pode chegar a ter sessenta centímetros, que habita a copa alta das árvores e que vê o mundo literalmente de cima. Um açor não obedece cegamente a ordens, e até mesmo a autora diz que, em determinados momentos, quando a ave decide permanecer em uma árvore, é o treinador que é obrigado a ficar esperando por ela pelas horas que forem necessárias. A falcoaria é, acima de tudo, um exercício de persistência e paciência.
De certa forma, vencer o luto é a mesma coisa.
Tudo que Macdonald escreveu em F de falcão me encantou. Sou fascinado por falcoaria há muitos anos, apesar de nunca ter tido a oportunidade de praticá-la. Então, esse livro para mim foi um prazer — e mais uma vez digo que sou sortudo por ter tido a oportunidade de trabalhar nele. Porém, o que me marcou de forma mais profunda talvez tenha sido as descrições que ela faz do pai e de como sente a falta dele. Eu não sei o que é perder um pai, todos os meus três estão bem. No entanto, durante o final da minha adolescência e início da minha vida adulta, um dos meus pais teve câncer. Pela terceira vez. Foi um processo longo, difícil e doloroso, cujas consequências são sentidas até hoje. Eu tentei me manter forte, para dar apoio a ele e a todos que precisavam de ajuda. Eu me preparei mais de uma vez para ver meu pai morrer. Mas a verdade é que, no fundo, você nunca está preparado para isso. É impossível se preparar para viver sem alguém que você ama.
Eu poderia dizer que agora que estou nos meus trinta anos, entendo melhor meus sentimentos e concluir que eu não tinha maturidade para encarar aquela situação e responsabilidade tão cedo na vida. Mas eu estaria mentindo. Ainda sou completamente imaturo e tenho bastante dificuldade de processar tudo que passei. No entanto, vejo o meu pai, agora saudável, mas ainda tendo que viver com algumas consequências da doença, e penso nele como um verdadeiro herói. Vejo minha mãe, que aguentou o peso do mundo nas costas sem reclamar nem um pouco, e sonho em ser forte como ela um dia. E vejo a mim mesmo, uma bagunça completa de sentimentos, tentando lidar com tudo isso até hoje.
Se você perguntar a qualquer um que me conheça, seja por alguns minutos, seja por uma vida inteira, essa pessoa vai dizer: o Ulisses é um imbecil. E ela tem razão. Eu tento a todo custo não demonstrar sentimentos. Contudo, Helen Macdonald me mostrou que a confusão que sinto é normal. Ela me mostrou que eu posso ser vulnerável. Que o luto é um processo difícil, mas que também é possível se recuperar dele. E que, quando o inevitável acontecer a um ente querido, nós sempre teremos a vida que passamos juntos.
Ulisses Teixeira, eleito por sete anos seguidos “o sorriso mais bonito do Méier”, abandonou cedo demais a carreira de modelo para se dedicar ao mercado editorial.
P.S.: No intuito de homenagear a rainha Xuxa, Ulisses Teixeira sugeriu o título A de açor, B de baixinho para o livro de Helen Macdonald. Após uma resposta violenta da equipe, Ulisses se recupera bem.
Sei lá, chorei bastante agora. Ao ler que pessoas tbm passam pelo mesmo que eu.
Como fáco para ler ( A vida que passamos juntos).
Oi, Islainy! Muita força! O livro citado no texto é “F de falcão”. Você pode encontrá-lo nas principais livrarias.
Apesar do texto ser muito bacana, pelo que entendi o autor não passou pela situação do luto, é isso? Desculpa, não quero minimizar sua situação que sem dúvida é bem difícil, mas luto é luto. Sofrer ao lado de quem se ama já é muito difícil, porém o luto além da dor dos últimos momentos ainda carrega consigo a questão da ausência completa da pessoa. Não dá pra se falar de perda sem ter perdido. Quase morte, é dor, mas não é morte, nem de perto! Apesar desse equívoco, creio valer a pena a sugestão do livro de Helen Macdonald.
Parabéns Ulisses pelo lindo texto! Consegue expor de forma simples e tocante, com uma breve analogia, à sua própria experiência. Estou lendo o livro e amando! Confesso que nunca li nada a respeito de falcoaria e eu mesma sofri muito também pelo luto de meus pais… Sucesso!!!
Oi, Andrea! Sim, autora perdeu o pai de repente. A partir da morte dele, ela voltou a se reaproximar da falcoaria.
Parabens Ulisses, mas é muita emoção pro meu velho coração.
Texto sincero e tocante!!! Realmente F de Falcão é uma obra prima! É daquelas obras que nos faz repensar a vida, causa um estardalhaço interno
por chegar no mais recôndito dos sentimentos… Uma lição de vida, “sessões de terapia”… De fato, EMOCIONANTE! Parabéns Equipe Intrínseca por tê-la publicado!