Maurício Gomyde

O menino e o catador de latinhas

4 / maio / 2016

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(Fonte: Vik Muniz)

Assisti outro dia a um vídeo que me tocou pela singeleza e me fez refletir por um bom tempo. Um menininho de quatro ou cinco anos, bem vestido e, provavelmente, de classe média, oferecia ajuda a um velho catador de lixo que amassava, com os pés, uma série de latinhas de cerveja e as jogava num saco. A mãe do garoto, inicialmente, pareceu incomodar-se com aquilo. Mas, de uma forma que aparentou ser educativa, desistiu de interferir.

Duas pessoas completamente diferentes, realidades distantes, dividindo o mesmo espaço. Classe social, cor da pele, idade — tudo distinto. Onde o velho enxergava trabalho, a criança sentia brincadeira. E, por alguns instantes, os dois devem ter se divertido naquele trabalho-brincadeira a quatro pés e quatro mãos.

Após assistir ao vídeo, lembrei-me de duas histórias pessoais. A primeira aconteceu há algum tempo. Minha banda havia feito tantos shows durante o ano que decidimos, no Natal, doar parte dos cachês a um orfanato. Fomos entregar as doações e levamos nossos filhos, para que conhecessem a dura realidade daquelas crianças. Na hora de irmos embora, minha filha mais velha, com cinco anos à época, começou a chorar e a me dizer que não iria, porque ali havia um monte de crianças e tudo o que ela queria era morar num lugar assim. A segunda aconteceu semana passada. Minha outra filha, a menor, fica o dia inteiro fazendo estrelinhas e piruetas. Praticamente vê o mundo de ponta-cabeça. Passava das 23h, o cansaço me nocauteando, e ela lá, pulando de um lado para outro. Dei uma bronca, mandando que parasse. O resultado foi uma sessão de choro por parte da pequena, até que pegasse no sono.

Tudo isso me fez pensar sobre a perda de inocência e pureza, conforme vamos crescendo e tomando consciência das coisas do mundo. Entramos na vida sem qualquer preconceito, não enxergamos outras pessoas como diferentes. Não são altas, gordas, magras, brancas, negras, ricas ou pobres. São pessoas, apenas isso. Não julgamos pela aparência, tampouco pela condição social. Os melhores são aqueles que não gritam, não batem, sentam no chão para brincar, fazem cócegas e caretas, pegam uma vareta e desenham na terra, jogam para cima na piscina, dividem um sorvete, leem uma história ou cantam uma canção.

A maturidade chega para matar a pureza. Claro, é necessário crescer e amadurecer; faz parte da ordem natural das coisas. Mas seria bom demais se restasse um bom pedaço daquela inocência. Porque, agarrados à maturidade, costumam vir o preconceito, a desconfiança, a inveja, o egoísmo e a intolerância. Muitas vezes, até falta de compaixão e indiferença com gente como o catador de latinhas.

O mundo onde eu gostaria de viver era um daqueles cheio de piruetas e latinhas para pisar. Quanto mais estrelinhas, mil vezes melhor. Ver as coisas de ponta-cabeça e entendê-las apenas como mais uma forma de enxergar a vida, e não insanidade aos olhos dos outros. Todos os apaixonados pela literatura sabem exatamente onde estão mundos assim. O desafio é tirá-los do papel e trazê-los para a vida real.

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Comentários

7 Respostas para “O menino e o catador de latinhas

  1. Adorei o texto, Gomyde. Será que é preciso perder a inocência completamente durante o processo de amudericento? Acredito que não. Toda forma de arte é capaz de trazer essa criança interior de volta à vida. Adoro a história de Peter Pan justamente por discutir um pouco o tema.

  2. Já imaginei sua filha pequena fazendo piruetas. Ela é a Vida e eu nunca me esqueço dela no seu livro.

  3. A inocência e a pureza acho que nunca perdemos mas elas ficam escondidas por tras das necessidades que o mundo nos impoe, de consumo, de ser melhor do que os outros, de ter um trabalho, de ganhar dinheiro. Eu tento ser desapegada o maximo que a vida permite. Queria ser mais.

  4. Muito singelo. Nós faz refletir sobre a vida é suas particularidades. Outra pérola desse fabuloso escritor e também cronista.

  5. Mais um texto excelente! É sempre importante alguém nos lembrar de que podemos resgatar o jeito criança de ver as coisas com leveza.

  6. Excelente reflexão! Quanto mais crescemos, mais perdemos a inocência com a qual nascemos. Nos perdemos em meio a tantos incidentes da vida… Triste! A maturidade nos torna mais duros…

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