Maurício Gomyde

O outro lado

9 / março / 2016

Direita X Esquerda

Imagem: Mundo Estranho (fonte)

Você compartilha nos seus grupos de WhatsApp uma série de piadas, imagens e vídeos “políticos”, montados com o único intuito de denegrir “o outro lado”, sem se importar com o fato de que naquele grupo há pessoas que pensam diferente e podem ficar indomodadas. Em seguida, revolta-se quando alguém do mesmo grupo compartilha algo que vai contra suas convicções. Então, procura novos vídeos e posta. E recebe novas imagens e piadas, num ciclo infinito construído por ideias como “eu sei mais”, “seu pautado”, “ignorante”, “não é possível que alguém tão inteligente não enxergue o óbvio”. Ignora que aquele grupo havia sido criado pelo interesse mútuo pelo trabalho, pela faculdade, por um esporte ou para relembrar velhos amigos de escola.

Você transforma seu perfil no Facebook e sua conta no Twitter num verdadeiro tanque de guerra para atacar o outro lado, como se houvesse mesmo dois exércitos incomunicáveis. “Ou está do meu lado, ou está do outro.” E, com artilharia pesada, ajuda a disseminar a ideia de que não há meio-termo.

Você rotula o outro lado com uma cor e grita, em letras garrafais: “SEU VERDE!” O do outro lado retruca: “LARANJA!” A partir daí, indignado, você se ocupa em tentar provar que a cor laranja é mais digna do que a verde, sem se dar conta de que tanto o verde quanto o laranja têm amarelo. Certamente haverá coisas em comum entre suas opiniões, mas o objetivo não é tentar enxergar o que há de comum e pensar racionalmente no porquê das diferenças. O objetivo é demolir a opinião do outro lado. Pisar, esmagar, esfolar e ir embora com o peito estufado.

Você quer convencer o outro lado. Precisa convencer o outro lado. Tem necessidade de ser o último a dar opinião. Mas não prestou atenção na opinião que veio de lá. É incapaz de se imaginar no lugar do outro, para tentar enxergar o que ela enxerga. Ou, pelo menos, tentar compreender o porquê de ela enxergar daquele jeito. Ela pode até ter dito algo que lhe faria sentido, caso a ideia não tivesse parado num escudo que você criou ao seu redor. E então passa o dia ressentido, sem observar o mal que aquilo lhe faz. Sábio Shakespeare: “Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que outra pessoa morra.”

O que você não percebeu ainda é que o outro lado é, no fim das contas, o mesmo lado que o seu. Mesmo mundo, mesmo país, muitas vezes a mesma cidade. Cada atitude acolá vai sempre refletir aqui, e vice-versa. Mais cedo ou mais tarde. Cada vez que compartilha, grita, esperneia, tenta convencer o outro lado, um grão de pólvora é colocado no barril, que tem sido enchido diariamente por você e pelo seu “inimigo” — vizinho, parente, colega de trabalho, aquele gente boa da turma do primeiro grau, o melhor amigo da faculdade. Mas você já bloqueou a maioria de seus novos inimigos, muitos de seus inimigos o bloquearam e você nem ficou sabendo. Pessoas com quem, agora, você não consegue sentar para tomar um chope sem pensar “esse aí é um corrupto, safado, burro, ladrão e mal-intencionado”.

Só que aquele barril de pólvora já está cheio até a tampa. Você e seu inimigo enfiaram o pavio. A caixa de fósforos vazia está na sua mão e o palito, na dele. Os dois estão se encarando e o próximo passo é acenderem juntos esse pavio. Porém, a explosão do barril não fará distinção entre um lado e outro. Os estilhaços atingirão você, seus amigos, seus familiares, seu filho. Provavelmente você vai passar a culpar integralmente o inimigo pelo estado a que as coisas chegaram, e vice-versa. Seu filho, para quem você é um espelho, vai repetir esse comportamento. Porque o filho do seu inimigo tem de ser também inimigo dele, claro!

É esse o mundo que você deseja para ele? Um mundo dividido entre dois lados que se odeiam? Saiba que é sua boa parte da culpa pela doença da intolerância e do ódio que assola sua vida e suas relações. Porque você não tem executado, diariamente, o filtro de Sócrates. Um segundo antes de compartilhar, comentar, curtir ou falar, você não tem se perguntado: “O que vou dizer é absolutamente VERDADE? Tenho plena certeza disso?”; “O que vou compartilhar é algo BOM? Não vou ferir ninguém?”; “O que vou comentar é algo ÚTIL e não apenas para arrotar minhas ‘verdades’?”

Recuo, ponderação e análises desprovidas do espírito de confronto são armas que muitas vezes desarmam o “inimigo”. Na verdade, você pode não estar percebendo, mas ele NÃO é seu inimigo. O que não significa que você não deva se expressar. É apenas o exercício diário da expressão gentil, tolerante, calma e parcimoniosa. Sair de seu próprio mundo para observar o mesmo fato por outro ângulo. Não retrucar antes de absorver. Ainda há tempo e dignidade em ser o primeiro a dar o passo para trás, pois, como bem disse o extraordinário Mahatma Gandhi: “Olho por olho, e o mundo acabará cego.”

Comentários

14 Respostas para “O outro lado

  1. Coluna definitiva sobre o assunto. Amei. Vou compartilhar.

  2. Concordo em gênero, número e grau. Lindo texto. ❤❤❤

  3. Quanta sensatez!! É o que anda faltando hj em dia. Tb vou comparrilhar

  4. Cada dia que passa eu fico mais sem vontade d entrar no face. Ja quase nao entro mais de tanto ódio que as pessoas compartilham. Até saí de alguns grupos de whats por causa disso. Quanto mais briga pior pra todo mundo. Quero é ser feliz.

  5. Uma sensatez q precida ser espalhada antes q acabemos CEGOS. vou replicar já. Um abraco, Mauricio.

  6. ADOREI o texto! Finalmente algo sensato! Sim, eu vejo essa situação na maioria dos poucos grupos de WhatsApp que participo. Vou compartilhar o link para ver se espalhamos um pouco de bom senso. Obrigada!

  7. Um dos melhores artigos que li nos últimos tempos. Deveria ser traduzido para diversos idiomas.

  8. Saí de alguns grupos de whatsapp justamente por isso que o Maurício Gomyde relata. Não é possível o estado em que as coisas chegaram. Ninguém tem o mínimo de bom senso em entender que o problema não é um lado e outro, mas todo o sistema que está falido. Se não forem feitas reformas muito mais profundas, nada disso vai adiantar. No fim das contas, tudo vai ficar igual e a única coisa diferente vai ser que você saiu do jogo com menos amigos e menos contato com familiares. Triste. Belo texto, Maurício.

  9. Compartilhado mil vezes. Falou tudo o que eu penso.

  10. A lucidez do texto deveria bater em todas as pessoas que estão se estapeando nas ruas hoje. Parabens pelo brilhante texto Maurício.

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