Artigos

Operação Vanessa Barbara

17 / novembro / 2015

Por Julia Wähmann*

OperaçãoImpensavel_Cozinha

O vídeo era uma compilação de solidariedade entre quelônios, sucessão de cenas praticamente iguais, mas nem por isso menos tenras: uma tartaruga virada sobre o próprio casco recebia cabeçadinhas e empurrões de outra de mesma espécie, até finalmente desencalhar e voltar a andar sobre as próprias patas. Durava pouco mais de um minuto, mas tive a impressão de observar aquelas criaturas em apuros por horas a fio. Instantaneamente pensei na Vanessa Barbara, em suas histórias e crônicas em que os quelônios são personagens frequentes, e me indaguei se ela seria também espectadora dessas lutas vagarosas em busca do eixo. Foi então que Operação Impensável caiu nas minhas mãos.

Já de saída é a personagem de Lia que se apresenta e introduz Tito ao leitor: ambos fãs de cinema, jogos de tabuleiro e donos de humores particulares. Ela, historiadora às voltas com uma tese sobre a Guerra Fria; ele, programador de internet; ela, agrião; ele, rúcula. Na cosmologia de Vanessa, além dos quelônios, as verduras têm um papel importante, e há uma categorização implícita na escolha de tais folhas. Em crônica de 2010 para o Brasil Econômico, a autora evoca as origens e usos botânicos e culinários da rúcula e do agrião para argumentar que aquela é “burguesa e petulante, capaz de anular o sabor dos outros alimentos […] uma usurpadora de paladares”, enquanto que este “é perseverança, é a gente simples da nossa terra”. No âmbito das bipolaridades, rúcula e agrião são uma versão vegetal do período histórico estudado por Lia, e é fácil deduzir que bandeiras cada hortaliça empunharia com afinco.

OperacaoImpensavel_WEBTudo o que sabemos sobre a Guerra Fria — as lembranças engavetadas e meio mofadas das lições escolares ou as reportagens e documentações das eras pós-vestibular — é um tanto inacreditável. As anotações e pesquisas de Lia comprovam que esse capítulo do mundo poderia ser fruto da mente de um ficcionista. As fugas espetaculares e trágicas de Berlim Oriental para o lado ocidental da cidade são uma amostra do quanto todas as operações de guerra são, por si só, impensáveis — como no caso do grupo de idosos que escapou por um túnel escavado durante dias, com altura suficiente para que a travessia fosse feita de cabeça erguida. Outros planos mirabolantes de americanos e britânicos incluíam o treinamento de pombos e gatos para atuarem como espiões na União Soviética. Houve até investimentos, por parte da CIA, em militares com supostos poderes paranormais, capazes de realizar leituras remotas da mente, um esforço com codinome Stargate que pretendia fazer frente às pesquisas psíquicas soviéticas. É de rir de nervoso.

Leia um trecho de Operação impensável

No âmbito conjugal de Lia e Tito, a batalha que se trava depois de certo tempo de harmonia não é menos tensa. Unidos em matrimônio com o respaldo de um “contrato de transferência” — que certamente dará ideias a muitos leitores em vias de trocar alianças —, Lia e Tito desfrutam de uma cumplicidade costurada por imitações de cenas de filmes, incorporação da fala de políticos e estadistas em suas conversas rotineiras, bichos de estimação batizados sob a égide de grandes poetas e e-mails com declarações que redefinem toda a literatura epistolar amorosa.

Possivelmente o maior feito do casal Lia e Tito é O grande livro do cinema, escrito em conjunto depois das inúmeras sessões de filmes e séries em casa. As resenhas e sinopses francas e absurdas redigidas pela dupla são de dar inveja a qualquer jornalista responsável pelos tijolinhos das páginas de cultura — posso inclusive vê-los se contorcendo em cócegas, ou se revirando como jabutis, frente à hilaridade dos comentários acerca de enredo, atuação e pormenores de produções audiovisuais. Tomada por um otimismo extremo, comecei a calcular quanto tempo levaria assistir a todas as obras citadas pelos personagens. Acabei me perdendo nas contas. Mas, quando ainda tinha algum controle sobre a situação, contabilizei aproximadamente noventa horas, o que parece bastante razoável se considerarmos o trânsito, as filas de banco e as esperas em antessalas de consultórios médicos.

Todavia, como dói constatar, a rúcula se impõe, o molho da salada azeda e um distanciamento e algumas histórias malcontadas se estabelecem entre Lia e Tito. A paranoia inerente à guerra é o que leva Lia a desconfiar cada vez mais de seu marido que agora parece um oponente, e o que a impulsiona a traçar um plano de ação tão engendrado como as táticas adotadas por forças e ideologias contrárias que cindiram o mundo durante as décadas de Guerra Fria.

No auge do conflito, Lia é como aquela tartaruga que vê o mundo de cabeça para baixo e que sacode pés e mãos como que pedindo uma ajuda dos céus. À espera do empurrãozinho providencial, a protagonista de Vanessa se empenha em distinguir o real do inventado e imprime em seus relatos a melancolia típica de combates dos quais todos saem derrotados. Como na mágica d’A rosa púrpura do Cairo, filme de Woody Allen que Lia e Tito não viram, quero transpor a página do livro e dar minhas cabeçadas em Lia, como os quelônios daquele vídeo.

operacao_vanessabarbara

Fonte: 1, 2 e 3.

Numa atitude talvez um pouco ruculesca, com o perdão da palavra inventada, termino a leitura e disparo mensagens para alguns amigos naquele tom meio presunçoso do “você-tem-que-ler-esse-livro”. É que, ao concluir alguns livros, tenho a sensação de estar saindo de um bunker que poderia abrigar tantos outros. Sempre lamentei que a leitura não pudesse ser praticada à maneira dos filmes, em conjunto, com aquelas cutucadas cúmplices e cochichos de “vamos tentar essa tática de jogar lavanda nos vizinhos como eles fazem nesse trecho?” ou “dá para acreditar na página 76?!”. Ao mesmo tempo, a graça reside justamente na possibilidade de tornar o tempo de leitura uma experiência elástica. Assim como posso ter a sensação de assistir por horas a um vídeo que dura um minuto, posso prolongar as vidas de Lia e Tito até perder de vista, pelo tempo que dure cultivar uma pequena horta de agrião; colocar Lia de pé e convidá-la para um lanche; rever um ou dois filmes do Billy Wilder, munida de paracetamol, para o caso de uma de nós adoecer de febre sem motivo aparente.

Leia também: Arqueologia de um casamento, por Vanessa Barbara

 

Julia Wähmann é escritora, publicou em 2015 os pequenos Diário de Moscou (Megamíni/7Letras) e André quer transar (Pipoca Press).

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *