Pedro Gabriel

[AS MUITAS VOZES DE BETA D´OZ Y REÁS]

22 / setembro / 2015

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Quando completei 28 anos, meu grande amigo Chin Chan me presenteou com o clássico Muitas vozes, do poeta Ferreira Gullar. Ele me ofereceu a primeira edição, publicada em 1999, pela José Olympio. Visivelmente, o livro não era novo. A capa já estava um pouco desgastada e as páginas começavam a amarelar — algumas, inclusive, estavam um pouco corroídas por alguma traça intelectual, que hoje deve estar dando oficina de poesia em alguma prateleira dos sebos deste mundo. A temática da morte é muito presente nos 54 poemas apresentados ao leitor e à leitora. Vamos combinar: não é um presente que se dê em um aniversário, data na qual se costuma celebrar a vida, a chegada ao mundo. Mas ele me conhece, sabe que sou apaixonado por qualquer coisa que envolva palavra e sentimento.

O livro ficou esquecido na prateleira da casa da minha mãe. Não que eu não tivesse gostado do presente, mas alguns são feitos para desembrulhar no futuro. Livros de sebo preservam alguns mistérios. Mais do que livros, são enigmas. Histórias dentro da história. Uma parceria involuntária entre o autor original e o último leitor, que coloca ali suas marcas, suas anotações, seus recados, suas indiretas analógicas. Às vezes, somos presenteados por uma poesia escondida. Por isso, gosto de explorar esses livros. Eles sempre vêm com um nome, uma dedicatória, algo a descobrir. Deixo de ser leitor e passo a ser um arqueólogo das palavras. A página passa a ser meu território de estudo, meu campo de exploração. Quem compra um livro num sebo nunca lê somente o autor que estava procurando, mas a história completa daquele exemplar. A gente passa a ler a leitura de quem o leu antes. É uma obra única, mesmo tendo sido republicada incontáveis vezes. Só aquele exemplar carrega no DNA a memória de todas as mãos que ousaram abri-lo. Só aquele exemplar carrega no GPS o endereço de todas as prateleiras onde ficou enfileirado à espera de uma oportunidade de encantar algum humano curioso. (O livro só quer isto: poder encantar). Só aquele exemplar carrega o que o último leitor não quis levar. A poesia, mais do que nas palavras, está nas margens

Sabe aquele livro que fica esquecido por dias e dias, meses e meses, anos e anos, até que, em determinado momento, alguma coisa diz que chegou a hora de encará-lo? Ontem, esse dia chegou para mim. Há três anos, Muitas vozes gritava na gaveta do meu quarto, e só agora me sinto pronto para emprestar-lhe meus ouvidos. Logo na abertura, antes do sumário, um nome escrito a lápis, quase apagado, me salta aos olhos: Beta. Mais embaixo, o valor do livro, R$ 12, também redigido à mão. Pelas mesmas mãos, presumo eu: a caligrafia é idêntica. Se eu demorasse mais alguns anos para lê-lo, talvez essas informações fossem apagadas pela borracha do tempo. O destino me deu ainda uma oportunidade de tentar decifrar ou entender a última leitora daquela obra. Ela agora tem nome: Beta.

Beta marcou um X — aliás, dois X — nos poemas que, suponho eu, mais amava. É apenas uma suposição, porque imagino que ninguém perca tempo marcando aquilo que mais odeia. Acredito também que ninguém tenha tamanha dedicação para destacar o que não aprecia. Leio o livro pelos poemas que ela selecionou. Beta se tornou uma espécie de conselheira editorial, fez um freela por conta própria para organizar os sentimentos alheios. Benevolência, eu diria. Não ganhou nada. Será que brigou com o pai? Com o namorado? Com a namorada? Será que Beta perdeu alguém ou anda triste sozinha?  (Às vezes, a tristeza vem do ganho). Beta me parece melancólica. Escolheu versos que falam de morte e poesia, o que parece ser a mesma coisa. Espero que seja só uma ilusão. Todo mundo merece ser feliz. Até quem desconhecemos. Até você, Beta!

Pelas informações obtidas, imagino que seja uma mulher recentemente apaixonada pela poesia. Ou pelo Gullar. Ou presenteada por alguém que amava. Ou apenas um codinome para esconder seus desejos. E Beta, na verdade, se chama Vinícius. Prefiro acreditar na verdade de quem se confessa. Não há motivo algum para mentir na dedicatória de um livro, ainda mais de poesia (ninguém lê, ninguém lê, ninguém lê).

Li o livro de Beta. Gullar foi só um call-to-action. Uma jogada de marketing para chamar a atenção de quem não quer enxergar a beleza da poesia contemporânea. Viva Beta! O meu exemplar de Muitas vozes é uma obra de Ferreira Gullar e Beta. Beta de quê? Todo poeta precisa de um nome composto para ser lido com respeito acadêmico, ora, ora! Beta Doze Reais? Não, muito pop. Que tal Beta D´Oz y Reás? Um sobrenome gringo. Isso é bom! Isso ajuda a vender! Em breve, algum jornal colocará na manchete: “CONHEÇA TODA A GENIALIDADE DE BETA D´OZ Y REÁS, A MAIOR POETA QUE JÁ EXISTIU”. E ela publicará sua obra completa num único livro, que, obviamente, será sucesso editorial. Ela bombará no Face, no Insta, no Twitter e no Snapchat! Paródias surgirão: Beta dos irreais? Não sei se Beta está viva ou se de fato existiu um dia. Beta agora se silencia. Este é o fim — duplo sentido — da poesia.

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