Clóvis Bulcão

Cumplicidade gaúcha

24 / agosto / 2015

Getúlio Vargas na Granja Comary Fonte: CPDOC/ FGV

Getúlio Vargas na Granja Comary. Fonte: CPDOC/ FGV

Dizem que uma história não tem dono. Napoleão Bonaparte, por exemplo, é um personagem que já inspirou um número absurdo de livros. Desde a sua morte, em maio de 1821, diariamente uma obra é lançada em sua memória. São 194 anos e aproximadamente 70.810 dias. Só Jesus Cristo mereceu mais publicações. Logo, podemos concluir que uma história, além de não possuir um único dono, não tem fim. Sempre existe a possibilidade de surgir um dado novo ou uma reinterpretação de uma velha informação. Um livro é quase uma fotografia, registra apenas um mísero ângulo em um determinado momento do objeto estudado.

Falo isso porque muita gente tem me procurado para contar casos saborosos sobre a família Guinle que poderiam, com certeza, ter entrado em Os Guinle. Até leitores fora do Brasil andaram me contatando para revelar curiosidades sobre eles. Nem todas são relevantes, mas algumas ilustrariam bem diversas passagens dessa saga familiar.

De tudo que já escutei, o mais significativo nem foi um relato e sim uma interpretação da trajetória dos Guinle. Em um almoço com Eduardo Gouvêa Vieira, presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), ele levantou uma questão. A família Gouvêa Vieira foi uma das donas da Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga. A empresa surgiu na década de 1930, no Rio Grande do Sul. Sua unidade pioneira foi na cidade de Uruguaiana e depois em Rio Grande, ambas no extremo sul do país. A família entrou para o negócio por acaso.

Em 1939, o presidente Getúlio Vargas baixou um decreto nacionalista que exigia, num prazo de sessenta dias, que todos os sócios de empresas petrolíferas fossem brasileiros. A Ipiranga tinha participação de argentinos. Assim, a companhia contratou o advogado carioca João Pedro Gouvêa, pai do atual presidente da Firjan, para tentar resolver o problema. O pagamento de seus honorários foi feito em ações da empresa. Logo, ao se tornarem sócios de uma empresa rio-grandense, os Gouvêa Vieira acabaram conhecendo de perto tanto a cultura gaúcha quanto a prática política de Getúlio Vargas.

Eduardo Gouvêa Vieira fez a seguinte análise da espetacular trajetória  dos Guinle: eles teriam sido beneficiados por Vargas devido à tradicional cumplicidade entre as famílias gaúchas. Sempre é bom lembrar que Getúlio foi morar na capital do Brasil, o Rio de Janeiro, em 1924, tornando-se ministro da Fazenda dois anos depois. Eduardo Palassim Guinle, pai dos futuros meninos Guinle, trocara Porto Alegre pela capital em 1871, portanto, seus descendentes conviveriam com Getúlio no Rio.

Apesar de a família ter estabelecido, no início do século XX, uma representação em Porto Alegre, na rua da Praia 341, não existem registros de que Getúlio tenha conhecido Eduardo Palassim Guinle, morto em 1912, nem mesmo seu sócio, Cândido Gaffrée, que morreu em 1920. Porém ambos, junto com Guilhermina, mulher de Palassim, ajudavam gaúchos que chegavam ao Rio de Janeiro. Além do mais, Getúlio Vargas, assim que chegou ao Congresso Nacional, se tornou líder da bancada gaúcha. Portanto, havia muitas razões para uma interseção de interesses entre os Guinle e os Vargas.

Não sei se foi apenas uma questão de cumplicidade gaúcha, mas a lista de favores obtidos pelos Guinle no período getulista é ampla. É bem verdade que eles eram hábeis em arrancar benesses do Estado, só que também é fato que nem sempre as relações com Vargas foram tranquilas (no episódio da nacionalização do petróleo, por exemplo, os Guinle perderam muito dinheiro).

Não sei se um dia será possível comprovar, com fontes históricas, a tese da cumplicidade gaúcha, mas ela faz, sem dúvida nenhuma, bastante sentido.

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