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Com quanto suor e lágrimas se faz uma criação de Steve Jobs

26 / agosto / 2015

Por Tatiana Dias*

Steve Jobs e Steve Wozniak

Eu cobria tecnologia em um dos maiores jornais do país e estava relativamente tranquila com a rotina de lançamentos e inovações. A agenda era quase sempre previsível. “A única emergência”, nós pensávamos, “vai ser se Jobs morrer”. Esse dia chegou. Repórteres voltaram correndo e, naquela semana, o jornal rodou um caderno especial com a íntegra do famoso discurso em Stanford, aquele em que ele disse aos formandos para “continuarem famintos, continuarem tolos”. Que discurso. Que gênio. Gênio? Não demoraram para surgir análises relativizando a genialidade de Jobs e mostrando seu lado egocêntrico, perverso e babaca. Metade gênio, metade babaca.

Mas como foi que um babaca capaz de erros grotescos — como negar a paternidade da própria filha, destratar funcionários e afundar projetos a ponto de ser chutado da própria empresa — conseguiu se tornar um ícone de uma indústria e inspiração para gerações? Mais: como alguém de personalidade tão controversa chegou a receber de um funcionário — ninguém menos do que Tim Cook, atual CEO da Apple — a oferta de um pedaço do fígado para tentar salvar sua vida enquanto esperava na fila do transplante?

Como Steve Jobs virou Steve Jobs CAPA E LOMBADA.inddA oferta de Cook, narrada pela primeira vez na biografia  Como Steve Jobs virou Steve Jobs, dos jornalistas Rick Tetzeli e Brent Schlender, ajuda a colocar em perspectiva a complexidade do fundador da Apple. Jobs é mesmo tudo aquilo que sua biografia autorizada e posterior adaptação cinematográfica contaram. Mas é muito mais. O veterano Schneler conheceu Jobs em 1986 e, desde então, criou com ele aquela relação jornalista-fonte que quase chega à amizade (mas que, quando chega perto, é colocada em seu devido lugar pelo dominante na história que é, óbvio, Jobs). Tetzeli é editor da Fast Company. Todo o trabalho de pesquisa e escrita do livro foi realizado anos após a morte do personagem principal — por isso é de se esperar mais liberdade editorial neste livro do que na biografia oficial escrita por Walter Isaacson. A experiência de Tetzeli e Schlender também oferece ao leitor um rico panorama para além do protagonista: o da indústria de inovação e tecnologia que ele ajudou a criar e a formatar.

É fascinante percorrer a trajetória de Jobs e ver que seu próprio amadurecimento coincide com o amadurecimento da indústria. Os hackers pioneiros do Homebrew Computer Club (onde Jobs conheceu seu parceiro Steve Wozniak) tinham interesse e inteligência, mas não tinham a menor ideia de como transformar o hobby de programar e mexer em computadores (até então estranhas máquinas) em um negócio. Jobs também era um jovem brilhante — foi ele quem pensou em vender os computadores junto com Woz —, mas não tinha a menor ideia sobre como gerir uma empresa. E cometeu erros gravíssimos, no aspecto pessoal e no profissional, que o lapidaram e o fizeram amadurecer passadas mais de três longas décadas.

Jobs foi um babaca do tipo que nega a paternidade da filha. Do tipo que destratava funcionários, gritava em reuniões e, se julgasse que alguém não era intelectualmente do seu nível, batia os pés, mostrava impaciência e fazia questão de ostentar sua superioridade. Quando a Apple deixou a garagem e virou uma empresa de verdade, sua imaturidade e arrogância o fizeram colecionar fracassos nos projetos que liderou, além, é claro, de lhe terem criado desafetos. Ele sabia pressionar os subordinados até conseguir que um projeto saísse do jeito que queria — mesmo que isso resultasse em um fracasso comercial, como aconteceu com o Apple III. Todo esse processo de criação e desenvolvimento é narrado em detalhes no livro — o leitor consegue contar com quanto suor e lágrimas se fazia uma criação de Steve Jobs.  E Tetzeli e Schlender não poupam críticas à primeira fase de Jobs como gestor.

Jobs falhou, mas persistiu. Ele poderia ter se aposentado milionário ao deixar a Apple em 1984 (e ele nem tinha 30 anos), mas sua personalidade o impeliu a fundar uma nova empresa: a NeXT, voltada para a criação de supercomputadores para fins educacionais. A lábia de Jobs lhe propiciou investimentos e boa recepção do mercado — embora ele nunca tenha entregado as máquinas de US$ 3 mil que havia prometido; elas saíram por US$ 10 mil. A graça é que, depois da incrível apresentação de Jobs, todo mundo acreditou que aquilo era genial. O próprio Schlender confessa que, no lançamento, publicou no Wall Street Journal que a máquina era “deslumbrante” e “relativamente barata”. No livro, em perspectiva, ele reconhece: o produto estava longe de estar pronto. Mas vendeu.

Na NeXT, porém, o lado gestor de Jobs degringolou. Não havia um CEO ou um conselho para segurar seus ataques de fúria; ele estava solto. Sua capacidade de ouvir e gerir só amadureceu com outra empreitada, comprada por US$ 5 milhões de George Lucas: a Pixar. Mas até a transação foi conturbada: ao negociar o valor, Jobs não poupou um “vai se foder” a um membro da equipe de Lucas. Ouviu de volta: “você não pode falar assim com um de nossos vice-presidentes”. E respondeu: “vai se foder você também”. Mesmo assim a transação foi bem-sucedida e a maneira como ele viu a equipe competente e coesa da Pixar trabalhar lhe ensinou muito sobre gestão (e a sua habilidade levou a Pixar a ser o enorme estúdio de animação que é hoje). Lá ele aprendeu a resistir à pressão, a confiar nos outros e a ceder responsabilidades — competências necessárias para o seu triunfal retorno à Apple.

A NeXT foi comprada pela Apple (combinando a produção de hardware e software), e, voltando para lá, Jobs selou a paz com a Microsoft (deu fim a um processo que a Apple movia por violação de propriedade intelectual, claro, mediante um bom pagamento de Bill Gates e o lançamento do Office para o Mac). Mas a volta foi mesmo marcada pelo enxugamento dos produtos, uma genial campanha de marketing (“Think Different”) e um lançamento que mudou tudo: o iMac, o computador pessoal com design inovador que se tornou sonho de consumo de uma geração.

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Brent Schlender, Bill Gates e Steve Jobs na histórica entrevista realizada em 1991 para a Fortune, na casa de Jobs © George Lange

Jobs não pensava em tecnologia: ele queria criar “o produto”. E foi assim também com o iPod, o iPhone, o iPad. Grandes produtos que combinaram uma série de tecnologias pré-existentes em uma bela embalagem, com design inovador e um sensacional apelo de marketing — sempre capitaneado pelo próprio Jobs. Essa, aliás, foi a função que ele não soube delegar: Jobs fazia questão de ser o único a apresentar os produtos, além de falar apenas com veículos de imprensa selecionados.

Essa preocupação com a imagem foi fundamental também quando ele topou o convite para ser o orador na turma de formandos de 2005 em Stanford. Ele não frequentava conferências (preferia jantar em casa, como Tim Cook conta). Topou o convite, mas falaria apenas em uma formatura: e seria em Stanford. E seria inesquecível. Ele contou até com a ajuda de um roteirista para escrever o famoso discurso. Jobs ficou nervoso. Mas a emocionante apresentação, combinada a sua habilidade como showman, levou uma geração inteira a se curvar a seus pés. Jobs falou sobre sua história, seus fracassos e seus recomeços. Ele falou que é preciso confiar: “de alguma forma, os pontos vão se ligar no futuro”. Em Como Steve Jobs virou Steve Jobs, Rick Tetzeli e Brent Schlender têm razão quando dizem que o jovem Jobs, ansioso e arrogante, jamais teria pensado nisso. As criações de Jobs são reflexo de muitas experiências, muitos fracassos, muitas tecnologias alheais e, sobretudo, muito trabalho de outras pessoas geniais.

E é por isso que o livro é tão rico e importante, principalmente para complementar a visão clássica do “metade gênio, metade babaca”, que todos nós ouvimos falar, e entender os contextos das criações de Jobs. A revista do MIT publicou um artigo recente sobre como o culto à grandes personalidades de tecnologia é potencialmente danoso para a indústria — além de injusto com as outras pessoas que trabalharam duro para inovar, o que pode ajudar a minar a estrutura necessária para a inovação futura. Afinal, toda inovação é uma combinação de uma ideia, um contexto, financiamento e um time capacitado para colocá-la em prática. O iPhone é uma combinação de diversas tecnologias pré-existentes. Jobs as empacotou e transformou em um produto útil e bonito. A inovação não está presa apenas aos grandes gênios — eles são apenas uma peça na engrenagem.

Como Steve Jobs se tornou Steve Jobs é uma obra que vai além do personagem principal — é muito rica para entender como o mercado de tecnologia se tornou o que é hoje. E também para tirar o gênio de seu pedestal — ao ler um jornalista veterano escrevendo sobre as jogadas de mestre e fracassos de Jobs narrados de forma sincera, e em uma perspectiva histórica, o leitor aprende muito sobre o contexto e sobre todos os pontos que o levaram a ser como era. E também sobre por que ele foi a maior personalidade da indústria da tecnologia — aquela que fez todos os jornais pararem no dia de sua morte, e cuja trajetória ainda é relevante para quem quer entender como chegamos até aqui.

Leia um trecho de Como Steve Jobs se tornou Steve Jobs
Leia também: Stephen Witt, autor de Como a música ficou grátis, explica como o digital mudará ainda mais nossa relação com a cultura

Tatiana Dias, jornalista, cobre tecnologia e cultura digital desde 2007. Passou pelas redações da revista IstoÉ, do Estado de S. Paulo e da revista Galileu e editou os blogs no Brasil Post.

Comentários

6 Respostas para “Com quanto suor e lágrimas se faz uma criação de Steve Jobs

  1. Venho nesse site muitas vezes para ler suas matérias. São impecáveis!

  2. Cativante sua forma de escrever.Enquanto lia, viajava, levando e entregando seu artigo a pessoas que irao se deleitar ao ler suas verdades. Principalmente, meus ex-colegas da TELEBRAS, Centro de Processamento de Dados – CPD. Coisa seria.

  3. ” Não há um grande gênio sem um toque de loucura” , Aristóteles; “De médico e louco, todos temos um pouco.”

  4. Que matéria bem escrita, que leitura agradável. Claro que é o assunto me é pertinente, mas a apresentação ajuda e muito. Parabéns.

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