Miguel Sanches Neto

O pior apóstolo

29 / junho / 2015

Dalton Trevisan nos anos 1990

Dalton Trevisan nos anos 1990

Depois de um período de amizade e de convivência literária, Miguel Sanches Neto e Dalton Trevisan se desentenderam. Sanches escreveu um romance que ficcionaliza esta relação, mas inicialmente não o publicou. Trevisan conseguiu acesso forçado aos originais e fez uma peça acusatória contra o ex-amigo, determinando assim a publicação do polêmico Chá das cinco com o vampiro. É sobre esta relação de conflito e de admiração que tratam os trechos inéditos dos diários do autor de A segunda pátria. 

 

12 de fevereiro de 2009 – quinta-feira

O falso ladrão
Na livraria do aeroporto de Curitiba vi um livro novo de Dalton Trevisan – Duzentos ladrões (L&PM). Intuí que um texto contra mim estaria lá. Estava. Com isso, não tenho mais nenhum compromisso ético com ele. A ofensa pública se iniciou com Dalton. Devo agora publicar sem receio o romance Chá das cinco com o vampiro e também meu texto-resposta a estes xingamentos — “Corujinha constipada” [que continua inédito].

 

12 de outubro de 2009 – segunda-feira

Zumbi
Li os contos cheios de estereótipos de Violetas e pavões, de Dalton Trevisan. Apenas dois são bons — “As desgraças de Zeno” e “Lábios vermelhos de paixão”. Nenhum ótimo. Repetição de histórias, de termos, de lógicas narrativas. Muda um ou outro contexto. No meio dos contos, farpas gratuitas contra os inimigos. Na página 126, ele me apresenta como traidor. Sou o “Migué”, numa referência depreciativa a meu nome e à minha origem interiorana. Literariamente, ele passou de vampiro a zumbi.

 

30 de março de 2010 – terça-feira

Oportunista
A revista Bravo! me convidou para escrever um perfil de Dalton Trevisan. Recusei a proposta, pois seria acusado de oportunista. Este será o mantra entoado contra mim: oportunista, oportunista, oportunista…

 

16 de outubro de 2010 – terça-feira

Como morrem os escritores
Aos poucos, muitos escritores contemporâneos e que me eram próximos vão deixando de existir para mim. De repente, um escritor soa falso e nada mais que ele escreva me seduz. Dalton Trevisan e eu estamos em pé de guerra, mas sinto a verdade de seus livros. É um jogo de vida ou morte da linguagem cada livro seu. É nestes autores que devemos ancorar. Nenhuma linha que não seja de luta contra o nada que nos espera.

 

1º de abril de 2011 – sexta-feira

Rearranjos textuais
Terminei de ler Nem te conto, João, a novelinha pré-fabricada de Dalton Trevisan. O que me encanta é o grau de mobilidade de seus textos, que se prestam a rearranjos contínuos. A novela é uma reorganização de trechos de contos do velho safado com uma mocinha audaz. Não apresenta novidade de conteúdo, mas é um novo método para a obtenção de livro.

 

19 de julho de 2011 – terça-feira

Primeiro encontro com Trevisan
Saindo do prédio da UFPR, em Curitiba, encontrei-me com Dalton Trevisan. É a primeira vez que o vejo desde que o romance foi publicado. Ele está firme, com o mesmo aspecto, apenas os cabelos mais brancos. Não me viu – eu estava em um grupo. Ele mostrava algo a uma mulher — vinham do almoço. E me senti de novo o discípulo diante do mestre — dez anos depois. Era como se eu tivesse encontrado o grande escritor pela primeira vez, um grande escritor pela primeira vez. Como somos pequenos diante de um mestre mesmo quando este se encontra no poente de sua criatividade.

 

11 de novembro de 2012 – terça-feira

O velório do vampiro
Esta noite sonhei que Dalton Trevisan havia morrido. Mais especificamente, ele se matara. Fui ao seu velório, encontrando-o com as pernas amputadas, o rosto muito magro. Por isso tomara veneno. Na capela mortuária, recebo dois pacotes. Em um deles, com uma capa de plástico transparente cheia de lápis (igual aos de minha coleção), um livro inédito — as suas memórias. Quando o abro, os lápis da capa — todos da mesma cor: laranja — caem. Não me importo, continuo lendo. É uma obra estupenda. O melhor livro do mestre. No outro pacote, o boneco plástico de um cachorro (ele sempre amou os cães) e uma sacola de pães frescos — a Santa Ceia do vampiro, eu no papel do pior apóstolo?

Comentários

Uma resposta para “O pior apóstolo

  1. Miguel Sanches Neto escreve: “Como somos pequenos diante de um mestre”. Ele também já é um mestre na arte das letras, mas como qualquer verdadeiro mestre é inconsciente de sua grandeza. Ainda não percebeu que é mestre.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *