Minimuseu da escrita

Por Miguel Sanches Neto

22 / junho / 2015

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Esta semana, levei um susto com um pequeno episódio que embaralhou minha percepção do tempo. Ao receber uma correspondência, vi que meu nome e meu endereço estavam datilografados. Por uns segundos, fiquei sem saber em que ano do passado eu me encontrava.

Foram centenas de cartas recebidas com o preenchimento do envelope por máquinas que imprimiam palavras borradas. Depois, este tipo de coisa foi ficando cada vez mais raro. Meus últimos correspondentes que usavam este meio mecânico de escrita ou morreram ou migraram definitivamente para o computador. Acho que o derradeiro foi Luiz Vilela, que me manda agora e-mails muito bem escritos, com espaçamentos, cabeçalhos e todos os rituais da correspondência tradicional. Mudou o meio, mas a forma ainda é a de antes.

Wilson Martins me mandava cartas datilografadas.

Ele morreu em 2010.

Dalton Trevisan me remetia envelopinhos lacônicos.

Nossa amizade morreu em 2001.

O meu é um mundo em ruínas.

Na era mecânica, escrever um romance demandava uma engenharia complexa. Datilografado um capítulo, se queríamos acrescentar um parágrafo, batíamos numa outra folha, recortávamos a página em que ele entraria, colávamos o pedaço. Os datiloscritos, a primeira versão industrial dos manuscritos, tinham tamanhos irregulares. Muitas vezes, cortávamos parte do papel, deixando-o pitoco. Os originais eram sujos, muito sujos.

Nunca fui bom datilógrafo, mas caprichava neste trabalho. Guardo apenas um desses originais à máquina — o de meu primeiro livro, Inscrições a giz, que ganhou o prêmio Nacional Luiz Delfino de 1989. Mera curiosidade de uma idade extinta.

Quando peguei o envelope recebido esta semana, revivi num átimo todas essas velhas sensações. O remetente era um sebo de Poços de Caldas. Ah, esses mineiros resistem firmes à passagem do tempo.

Recortei o envelope para guardar, talvez fosse minha última correspondência num sistema de escrita que tem um valor imenso para mim. Um capítulo de meu romance de estreia (Chove sobre minha infância) é sobre como aprendi a datilografar, conseguindo assim sair de uma família destinada a trabalhos braçais. Criei um romance em torno do inventor brasileiro da máquina de escrever (A máquina de madeira) e vivo à sombra de três máquinas portáteis, com função memorialista. Elas ficam no balcão ao lado de minha mesa — a minha inseparável Lettera 35, uma Hermes Baby de teclas verdes e uma Tippa, alemã, de teclado de código, usada para mensagens cifradas.

É meu minimuseu da escrita mecânica.

Mas leio hoje que a nova moda entre os hipsters — grupo que rejeita o mainstream — é usar máquinas portáveis em lugares públicos, e postar fotos na internet deste anacronismo tecnológico.

E isso me deu uma alegria muito grande. Aquele meu velho universo de formação ainda comporta alguma possibilidade de ressurreição.

Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná. É autor de seis romances, além de livros infanto-juvenis, contos e ensaios. Seu romance A Segunda Pátria foi publicado em 2015 pela Intrínseca.

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Comentários

3 Respostas para “Minimuseu da escrita

  1. Li seu A Segunda Pátria e gostei bastante, mas o que mais queria dizer é que eu o conheci em 2004/2005, quando li Herdando uma Biblioteca. Gostei muito, pois, guardadas as proporções, fez-me lembrar da minha própria história. Não era fácil ter livros, mas eu tive acesso a eles mais facilmente que você, porque minha escola tinha uma boa biblioteca e era lá que eu ficava quando tinha aula vaga. Testinho meio besta este aqui, mas é apenas para dizer que o conheço e gosto do seu texto. Continue a nos proporcionar suas boas histórias.

  2. Correção: textinho e não testinho. Desculpa, aí.

  3. Meu pai ,que Deus o tenha,concertava essas preciosidades,me lembro que no centro da cidade(Sete Lagoas MG),existia uma agencia do Banco Mercantil do Brasil,e,todas as maquinas de escrever era meu pai que concertava as vezes ele ia no próprio banco e resolvia o problema lá mesmo,ou na semana a maquinas chegavam lá em casa trazidas por um funcionário do Banco,isto se repetia de duas á três vezes por semana.Um momento que me marcou muito e que não esqueço nunca mais com a chegada do computador,as maquinas de escrever foram caindo em desuso,com isso,o ganha pão do meu pai.Com Certeza meu pai iria adorar o seu livro `A Maquina de Madeira´ e que come este e `A Segunda Pátria´Já estão na minha estante na fila para ser devorados.Parabéns Miguel.

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