[CARLOS, MEU COMPANHEIRO DE VIAGEM]

Por Pedro Gabriel

16 / junho / 2015

carlos

Drummond, o poeta, é a encarnação da paz, do sereno. É a bonança míope que perambula pelo mundo, mundo vasto mundo, com seu par de óculos e suas sete faces. É a calmaria em pessoa (Fernando?). Pelo menos é o que sinto quando vejo suas fotografias antigas, quando releio seus poemas sempre novos. Ele sempre escreveu sobre o hoje. A modernidade não seria tão moderna sem seus versos. Carlos, o homem, devia ter seus problemas como todos nós. Talvez se estressasse de vez em quando ao ler uma crítica. Talvez perdesse a paciência numa manhã de domingo. Talvez se descabelasse, mesmo em meio à calvice, ao ouvir uma notícia horripilante. Não sei. Nunca saberei. E não importa. É bom ser gauche na vida de vez em quando também. Se endireitar nem sempre nos trouxe os melhores frutos.

Quando viajo, gosto das longas distâncias. Percorro-as à luz do dia. Não sou daqueles passageiros que adoram dormir a noite toda para acordar só no fim da estrada, no começo do destino. Eu aproveito a viagem como quem aproveita um filme. As rodas do ônibus parecem também fazer girar um trailer da minha vida. As lembranças mais longínquas se aproximam com velocidade e riqueza de detalhes impressionantes. Parece que a infância resolveu se acomodar na poltrona ao lado. Aperto o cinto e sinto o asfalto conduzir minha história. Aproveito cada pedágio (e pago uma dívida com a memória). Aproveito cada placa (e leio as imposições da vida). O Brasil é mesmo imenso. As recordações são mesmo intensas.

Conheço de cor o trajeto Rio-São Paulo. Poderia me candidatar à vaga de motorista, se tivesse CNH. Eu sei que para muitos é difícil digerir isso, mas nunca aprendi a dirigir. Nada contra os automóveis. Tudo a favor da população. Eu sou demasiado distraído para me concentrar por um longo período em uma única (e exaustiva) tarefa. Não quero causar acidentes. Prefiro transformar possíveis incidentes em palavras. Se for poeta, não dirija. Essa mensagem deveria estar impressa nas latas de cerveja, nos maços de cigarro, nos corações desajeitados, nas contracapas dos livros.

Minha preferência pelas quilometragens mais extensas é que elas possibilitam mais tempo de leitura. Podia existir algum programa de milhas por quilômetro lido. Sei lá, apenas uma ideia. Sempre gostei de ler no ônibus. Nunca me deu dor de cabeça. Minha única enxaqueca é quando esqueço de levar um livro ou quando deixo o livro sem querer na minha poltrona. O último foi a reunião de crônicas Ela me dá capim e eu zurro, do Fabrício Corsaletti. Talvez esteja nos Achados & Perdidos, aquele setor que toda rodoviária grande tem (ou deveria ter), mas que nós, passageiros distraídos, nos perdemos toda vez que tentamos achar o que havíamos perdido. E acabamos desistindo dessa busca inútil pela literatura.

Numa dessas viagens, tive a pior experiência da minha vida. Sim, mesmo com 30 anos, acredito que daqui para frente nada será mais desgastante, invasivo e deselegante do que o que aconteceu no dia 14 de junho de 2015. Eu estava voltando da Feira do Livro de Resende e pronto para pegar quatro horinhas de estrada até São Paulo. Coloquei na mochila, como sempre, um livro. O escolhido da vez foi a coletânea A rosa do povo, do poeta mais que brasileiro, mineiro; do mineiro mais que mineiro, itabirano; do itabirano mais que itabirano, Carlos Drummond de Andrade. Até aí tudo bem. Acompanhado de poesia nada é capaz de estragar o meu dia. Era o que eu achava até ouvir os primeiros sons vindos da fileira ao lado. Para ser mais preciso: entre 11h e 15h de um domingo ensolarado. Para ser ainda mais preciso: poltronas 27 e 28 da viação Cometa. Para ser ainda mais e mais e mais e mais e mais preciso: placa LN-3133. Olha, eu já conheci muita gente insuportável, mas acredito ter feito um intensivão de tortura mental com as meninas mais chatas do trajeto Resende-São Paulo. Minto. Do trajeto Resende-São Paulo não, de todo o sistema rodoviário da América Latina. De todo o sistema rodoviário da América Latina não, do mundo. Do mundo não, da galáxia. Da galáxia não, do universo. Do universo não, de algo que ainda não existe e que sem dúvida algum cientista descobrirá e será maior que o universo. Dizem que o Big Bang não foi uma explosão involuntária. Ele foi uma espécie de suicídio do mundo antes do mundo em si existir. Foi um ato de resistência, um gesto proativo de libertação, uma tentativa de escapar dessas duas criaturas humanas que atordoariam o planeta Terra alguns bilhões de anos mais tarde.

Essas damas falaram alto a viagem inteirinha: 440 minutos. Não tiveram nem a dignidade de descer no posto GRAAL, naquela parada de meia hora, e aliviar meus ouvidos por alguns instantes. Tenho raivinha de quem não respeita o ambiente coletivo. Dessas que pessoas acham que o mundo é o quintal da própria casa. E acreditam que podem plantar um pé de fofoca com megafone embutido. Por causa delas, a roleta da esperança de uma sociedade melhor não anda. O mundo pede play; elas são a tecla pause. Espero que futuramente elas encontrem Jesus, Maomé, Buda ou qualquer outra personalidade que pregue o mergulho para dentro de si, em silêncio.

Dizem que ninguém mais lê. Eu até tento. Mas vejo que estamos trocando a contemplação silenciosa das palavras escritas pelo arroto estridente da fala desnecessária. Falar é bom nos lugares certos e no tom certo, evidentemente. Ouvi de tudo (e os outros passageiros também, e o motorista também, e o policial rodoviário também, e as malas no bagageiro também, e a orelha do meu livro, agora vermelha, também): tragédia, traição, religião, maternidade, política, desemprego, sonho, desejo… Parecia spoiler da última temporada de Games of Thrones. Nem nas aulas de matemática do terceiro ano eu me lembro de ter escutado tanto blá-blá-blá. Eu juro por tudo o que há de mais sagrado (um poema do Drummond?) que se eu tivesse uma galinha, uma farofa e uma cachaça barata na minha bagagem de mão, teria feito uma macumbinha de leve para restaurar a paz celestial naquele ambiente ambulante.

Tentei esquecer o meu redor.

A rosa do povo brotou em minhas mãos. Cada verso, uma nova pétala de esperança desabrochava. A Segunda Guerra Mundial e a modernidade do novo Rio de Janeiro, com seus bondes e comércios, nasciam em cada página. Canadá, Moscou, Estados Unidos, Rio de Janeiro. Um pedaço do mundo se escreve ali. Drummond foi (ainda é) nosso melhor professor de história. Não seria essa a função da poesia? Ensinar a realidade do seu tempo com uma camada lírica de esperança?

Drummond diz que a literatura estragou suas melhores horas de amor. Pois eu digo que aquelas meninas trucidaram a leitura dos seus melhores poemas, Carlos. Tenho certeza que Ontem teria me emocionado ainda mais sem o diálogo daquelas duas. Aposto que Consolo na praia teria mil vezes mais significados se não me fosse tirada a concentração. O outro Carlos, o eterno Carlitos, homenageado no último poema do livro, não suportou tanto desaforo e partiu com seu passo característico e carismático rumo aos tempos modernos. Se elas soubessem da existência de sua poesia, talvez a calmaria reinaria nas poltronas 27 e 28 e elas se petrificariam exatamente como aquela sua estátua na orla de Copacabana para contemplar o mar, o mundo, o bonde que não existe mais. Eu até deixaria que elas roubassem seus óculos em troca de silêncio. Me perdoe. É o desespero.

Deveria ser crime hediondo interromper a leitura de um poema. Espero que o STJ leve em consideração esse meu texto e coloque em discussão nas próximas decisões legais. Não podemos mais viver com tamanha brutalidade sentimental. O que será dos nossos filhos? Dos nossos pais? Do nosso país? Não podemos deixar que a rosa e o povo murchem. A rosa e o povo devem marchar para o futuro. Eles vieram ao mundo para florir.

Chegando na Rodoviária do Tietê, num ato deliberado de rebeldia momentânea, li um poema em voz alta. Os passageiros mandaram eu me silenciar.  Em pleno século XXI, a leitura de um poema incomoda mais do que as fofocas em looping de duas meninas insuportáveis. É quase uma heresia. Os deuses da insensibilidade um dia me perdoarão. Enquanto o juízo final não chega, entrego um papel esverdeado e numérico (a modernidade idolatra os números) ao moço uniformizado e, em troca, ele me devolve minha mala, que sufocava no bagageiro. Até a próxima, Carlos. Desculpa ter te colocado nessa enrascada.

A poesia é uma belíssima viagem. Pena que algumas pessoas colocam pedras bem no meio do nosso caminho. Boa estrada, Drummond!

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

6 Respostas para “[CARLOS, MEU COMPANHEIRO DE VIAGEM]

  1. Adorei! Prezado Pedro, como você, também gosto de poesia e não dirijo. E sou mineira, como seu companheiro de viagem. E você conseguiu transformar sua indignação ou seja p que for num texto delicioso! Obrigada por exaltar Minas, Drumond! Venha visitar-nos! E quanto às madames, conclui que o Sr. Motorista deveria ter chamado a atenção delas, simples e direto! Grande abraço!

  2. Você foi o grito em meu peito! Que esta fonte nunca se seque. E se secar,que ela vem regar muitos frutos! Show! Parabéns.

  3. Obrigado, Pedro, pelo seu texto reflexivo (uma crônica?), pelos jogos de palavras, pelas observações sobre o Big Bang! Espero que as duas moças venham a mudar o seu comportamento em curto prazo.

  4. Pedro, gosto de todos os seus textos, mas esse é igual o mineiro quando fala: é de mais de bom. Bem lembrado, para quem fica poetizando a vida, realmente é perigoso dirigir. Eu, às vezes, me pego dirigindo e viajando em pensamentos. Também fico incomodada com gente falando alto do meu lado. Se as pessoas fossem mais educadas, talvez tivéssemos mais leitores.

  5. Maravilhoso texto! Ler no ônibus é viajar em todos os sentidos. Não dirigir tem essa vantagem de guiar os pensamentos para as divagações mais desenfreadas.

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