[A porta é um poeta silencioso]

Por Pedro Gabriel

9 / junho / 2015

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Sempre achei uma tremenda injustiça chamar uma pessoa burra de porta. Não por me sentir mal por culpabilizar um ser humano. Minha preocupação é unicamente com a inocente e inanimada porta. Não sabia que portas eram desprovidas de inteligência. Sempre tive a ligeira impressão de que elas só podiam exercer a tarefa de ser o que são justamente porque um cérebro maciço ou de vidro rege suas funções. Elas são a materialização dos nossos limites, da nossa segurança, da nossa intimidade, da nossa liberdade. São guardiãs silenciosas do nosso universo: autorizam a saída ou negam o visto de entrada do outro em nosso espaço. Elas protegem nosso mundo dos julgamentos alheios. Elas, queridos humanos, não merecem carregar o fardo da escassez de nosso raciocínio.

A porta no quarto do filho, por exemplo, é um aviso para que os pais não invadam o território pueril da imaginação fértil. Uma porta numa sala de reunião é uma forma de dizer à corporação que o que acontece ali fica ali. A porta de casa delimita a partir de onde podemos jogar o tênis para cima, puxar a calça para baixo, tirar a camisa, deixar a samba-canção (ou não), se jogar no sofá e assistir a qualquer coisa inútil na TV aberta — sem ninguém para nos importunar.

A porta do banheiro é a rainha das portas. A mais respeitosa. Soberana. Por ela, daríamos um trono (se é que vocês me entendem). Foi essa porta que te protegeu durante toda a sua infância, quando você deixava a água do chuveiro caindo para enganar sua mãe (jurando que estava no banho). Aquela porta bem que tentou avisar seus pais, mas você tinha um cúmplice, aliás, uma cúmplice: aquela maldita chave! Aos doze anos, você ficava mais tempo atrás daquela porta, é verdade… Mas era por outra razão, meu jovem. Talvez, hoje, por sua culpa a Cantareira esteja apenas com 5% de sua capacidade de abastecimento. Você também é um pouco culpado, é muito fácil xingar os políticos no Twitter.

A porta dos fundos talvez seja a mais conhecida e querida do Brasil. Tantos amantes já fugiram por ali. Tantas pizzas já foram entregues de madrugada. Tantas histórias escaparam pela escadaria do prédio — e não por causa de um eventual incêndio. Hoje, essa mesma porta me faz gargalhar no YouTube às segundas, quintas e sábados.

A pessoa burra é burra porque quer, porque tem preguiça de correr (e recorrer) atrás de informações relevantes, de mergulhar fundo nas coisas que lê, ouve ou vê. Uma pessoa burra, na minha opinião talvez nada inteligente, é alguém que tem tudo para ser mais, mas faz mais ou menos de tudo para ser menos. Lê mais ou menos um poema. Ama mais ou menos a vida. Curte mais ou menos um post útil no Facebook. E levanta ferozmente a bandeira de querer ser menos (mas só nas redes sociais!). Quando se trata de conhecimento, não siga o movimento Bauhaus. Menos não é mais. Entendeu? Mais ou menos…

Agora a porta só é uma porta porque foi obrigada a ser uma porta. Seu destino foi escolhido, não pelas mãos de Deus, mas pelos dedos do marceneiro. Ela era um toquinho inofensivo (entenda aqui “toquinho” como um pequeno toco e não um dos mais conhecidos parceiros de Vinicius) ou uma belíssima árvore exalando charme, simpatia, folhas e oxigênio pelos quintais do mundo. Se ela pudesse escolher, você acha que ela preferiria: a) fazer parte do cenário do Jardim Botânico e ser bajulada pelas famílias todos os domingos; b) a logo de uma grande editora; c) um objeto insensível onde todo mundo passa a mão diariamente?; ou d) todas as alternativas anteriores. Não lhe foi dada a oportunidade de escolha, querido leitor. A vida nem sempre é uma prova do ENEM.

Outro dia, fui almoçar em um restaurante no Centro e encontrei uma folha A4 em fonte Arial com Cuidado! Porta de correr. Na mesma hora, guardei meu celular, segurei minha carteira e chamei Jesus. Que p%&#* é essa? Uma nova modalidade de assalto? Sempre achei uma graça “Porta de correr”. Nas próximas Olimpíadas quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar no pódio dos cem metros rasos, junto com Usain Bolt e Tyson Gay.

Eu sou uma porta. Pelo menos é assim que eu me sinto toda vez que preciso encarar uma saída ou uma entrada de algum lugar. Sempre que leio o adesivo do empurre, eu puxo. Sempre que leio puxe, eu empurro. Não sei o que acontece no meu cérebro. Parece que as conexões ficam sem sinal. Eu sei o que eu preciso fazer. Eu vou puxar, eu vou puxar, eu vou puxar. Mas na hora, eu empurro. O músculo do braço direito tem uma reação inesperada, quase revolucionária. Grita: “Independência ou porta!”, e se manda às margens do rio Ipiranga.

Dizem que as paredes têm ouvido, mas as portas — ah, as portas — essas têm a capacidade de reter, entender e processar informações sigilosas. Mas, por respeito às pessoas, ficam silenciosas. Se mantém na segurança do anonimato. Se elas quisessem a fama inglória, trocariam a letra r pela letra e, e virariam poetas. Elas são inteligentes. Burros somos nós, seres pensantes, que passamos por elas diariamente sem ao menos ter a decência de agradecer por mais uma oportunidade que se abre em nosso caminho.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

2 Respostas para “[A porta é um poeta silencioso]

  1. O jovem poeta intelectual que enxerga em uma (depois de ler isso, não mais simples) porta caminhos, oportunidades. “Elas, queridos humanos, não merecem carregar o fardo da escassez de nosso raciocínio.”
    Tem noção do quanto é prazeroso vir aqui por seus textos? Andar com seu livro como companheiro fiel e não cansar da sensação maravilhosa de ler, reler, decorar. É uma dádiva encontrar pessoas como você que extraem das mais simples coisas, poesia. Porque poetar é preciso. Independência ou poesia!

  2. amei! por mais portas, em nossas vidas. ainda que invisíveis”, portas!

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