Bastidores

Sobre ter pais constrangedores e se identificar com Neil Gaiman

30 / abril / 2015

Por Mariana Calil

FilhosDeAnansi_blog

Meu pai pode ser uma pessoa bem constrangedora, às vezes. Do tipo que a família não faz pavê só para evitar A Piada. Sério. Um dia estávamos passeando no shopping e ele me tirou do chão e, me segurando pela cintura, me girou no ar. Por que ele fez isso no meio do shopping lotado? Só para ver se ainda conseguia. Mas vamos olhar pelo lado bom: pelo menos ele não morreu em um palco de karaokê, deixando uma desconhecida seminua ao cair.

Foi assim que o sr. Nancy morreu. Pobre Nancy. Isso nem foi um spoiler, já que acontece no primeiro capítulo de Os filhos de Anansi, clássico de Neil Gaiman que acaba de ganhar uma nova edição pela Intrínseca. A princípio a história toda parece muito louca: imagine ir ao funeral do seu pai, que você não via há anos, e descobrir que ele é uma encarnação de um deus africano (Anansi! No sul dos Estados Unidos, ele recebeu o apelido carinhoso de “Nancy”) e que você não recebeu nenhum poder dele porque seu irmão (que você nem sabia que existia) ficou com tudo. Ah, é, para entrar em contato com seu irmão, basta mandar o recado por qualquer aranha que ele aparece, ok? Meu pai pode até fazer umas cenas constrangedoras, mas acho improvável que seja páreo para Anansi.

link-externoLeia um trecho de Os filhos de Anansi

Mesmo assim Neil Gaiman me faz lembrar do meu pai constrangedor quando eu leio sobre o pai constrangedor de Fat Charlie, um rapaz que vê tudo mudar quando seu irmão, herdeiro de todos os poderes do deus africano, vai para o trabalho em seu lugar depois de uma noite de bebedeira dos dois. Acho que é justamente isso que me encanta tanto em Gaiman. Os personagens (humanos, deuses, espíritos, o que for) que vivem aventuras tão loucas têm traços bons e ruins como qualquer um que você conheça e estão, lá no fundo, buscando a mesma coisa que eu e você: afeto, diversão, justiça ou só viver uma vida normal, apesar das coisas completamente fora do nosso controle que aparecem no dia a dia.

Neil-Gaiman

Tudo bem, tudo bem, “fora do controle” em Gaiman vai um pouco além das circunstâncias normais. Outro exemplo: em O oceano no fim do caminho, inspirado em memórias de infância do autor, o protagonista sem nome (adoro isso) assiste a sua família entrar em colapso depois que a mãe contrata uma nova babá… Que por acaso é uma criatura monstruosa que ele conheceu quando foi para outra dimensão com sua vizinha, que parece uma bruxa, mas isso é só um detalhe. O que o personagem principal mais deseja é que sua família volte ao normal.

link-externoLeia também: O medo e a fantasia na obra de Neil Gaiman

Amo Neil Gaiman. O cuidado que ele tem com as palavras é tão grande que parece que a história está sendo contada para mim por um daqueles amigos cheios de casos. Eu me apego aos personagens. Espero ansiosa para conhecer as novas histórias (a Intrínseca está reeditando Lugar nenhum e vai publicar os inéditos Trigger Warning e Hansel & Gretel). E ele sempre me deixa pensando no quanto, mesmo sem elementos fantásticos, nossas vidas têm pessoas e histórias incríveis que às vezes deixamos de valorizar.

link-externoLeia também: Neil Gaiman apresenta A Verdade é uma caverna nas montanhas negras

link-externoLeia outros textos da equipe da Intrínseca:

Pássaros no escuro, Por Pablo Rebello
São só roupas, por Mariana Rimoli

Minha vida em 50 tons, por Nina Lopes

Keep YA Weird (ou a arte de fazer livros incríveis), por Talitha Perissé
Sobre livros e anjos, por Sheila Louzada
Amber Appleton e o poder da música, por Rachel Rimas

 

Mariana Calil é assistente editorial na Intrínseca. Tem um gosto muito louco para leitura, que vai de livros infantis a memórias de guerra, passando por literatura policial e ficção especulativa.

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