Dos sonhos e das coragens

Por Leticia Wierzchowski

17 / abril / 2015

EDUARDO-GALEANO

Os escritores morrem, pois chega um ponto em que nem mesmo eles conseguem mais ludibriar as parcas, como Sherazade fez com o seu sultão por 1001 noites. Os escritores morrem na realidade, mas seguem vivos na sua ficção — talvez seja este o maior prêmio para uma vida de inconstâncias financeiras, de sonhos e de coragem. Coragem de viver do que se escreve e de extrapolar diariamente as fronteiras da realidade, misturando vida e ficção na penumbra de dias repletos de personagens, de angústias e de mundos construídos de palavras.

Esta semana começou com a triste notícia da morte do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Lamentei muito — só podia mesmo ser uma segunda-feira para levar o Galeano, tenho grande desconfiança das segundas-feiras. Mas ficamos nós aqui com as suas “palavras andantes”. Durante anos, elas andaram dentro de mim, inspirando-me num tempo em que escrever era, mais do que um sonho, um delírio absoluto — e viver da literatura uma coisa impossível. Galeano me “ajudou a olhar” o futuro com a mesma vontade emocionada do seu menino de palavras, aquele que, emocionado e espantado com a grandiosidade do oceano, pediu ao pai que o ajudasse a olhar o mar pela primeira vez.

Lembro de algumas tardes sob o sol invernal, na antiga casa da minha infância e juventude, sentada na enorme varanda de pedras amarelas, lendo por horas e horas os livros de Galeano, sonhando em escrever meus próprios livros — já com alguns personagens soprando nos meus ouvidos. Galeano era um esquerdista famoso, mas não lembro dele por seus livros mais políticos. Nem tinha nascido quando As veias abertas da América Latina foi lançado e, depois que cresci, não me ocupei muito dele. As utopias de esquerda feneceram há tempos, e Galeano recentemente renegou o livro tão famoso — os livros nascem de uma certa conjuntura, e alguns envelhecem e perdem o vigor. Os autores também se transformam — nunca nenhum livro seria reescrito pelo seu autor como da forma original. De modo que Galeano não temia e nem renegava as suas transformações pessoais, políticas e literárias — disse que cairia dormindo se tivesse de reler As veias abertas 40 anos depois da publicação.

Adeus, Galeano. Ou até mais. Vou te visitar ali na minha estante sempre que tiver vontade. E deixo aqui uns versos teus, que dizem tanto de nós: “Dos nossos medos nascem as nossas coragens e nas nossas dúvidas vivem as nossas certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão. Nas perdas, nos esperam os encontros, porque é preciso perder-se para tornar a se encontrar.”

 

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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