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Sobre livros e anjos

6 / março / 2015

Sheila Louzada*

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Em meados de 2013, eu trabalhava de casa para algumas editoras quando caiu em minhas mãos Dias de sangue e estrelas. Era uma história fabulosa, com anjos e seres bestiais de outro mundo mergulhados em guerras e magia, um turbilhão mirabolante de fantasias — tudo comprimido na telinha do meu laptop, na quitinete em que eu morava, em pleno interior do interior de São Paulo. Ali, em meu cubículo cinza, começou a surgir uma menina de cabelo azul que tinha sumido numa ponte de Praga e que aparentemente havia se apaixonado por um anjo em uma vida passada e que… Sério, eu não estava entendendo uma linha do que eu lia.

Até que finalmente encontrei o e-mail perdido avisando que aquele era o segundo volume de uma série. Ah, tá. A menina de cabelo azul era Karou, que, antes tão perdida quanto eu, descobre ao final de sua adolescência quem realmente é: uma quimera reencarnada em corpo humano, vinda de um outro mundo, chamado Eretz. Um mundo em que anjos e quimeras vivem em guerra, um mundo em que seu amor proibido a condenou à morte. Em que o anjo que foi sua esperança de paz elimina sua tribo inteira por não conseguir aceitar a morte dela.

Talvez as pessoas que não são do meio editorial não saibam, mas grande parte do trabalho de uma editora é feito por quem está fora do escritório, no conforto de sua casa (ou no desconforto de sua quitinete). Tradução, revisão, copidesque, design de capa etc. Eu, no caso, era copidesque. Fazia uma espécie de revisão da tradução. O cópi olha a tradução, compara o texto em português com o original em inglês, vê o que faltou e o que sobrou, vê se a tradução soa natural, se pode ficar melhor, pesquisa um termo aqui outro ali (mentira, pesquisa alucinadamente), e assim vai, linha por linha. Em resumo, é isso. Só que muito mais trabalhoso do que parece.

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Então lá estava eu, envolvida em um mundo de monstros e seres com asas se matando quando, no meio disso tudo, minha própria vida deu uma cambalhota e caiu meio desengonçada no chão, arfando e babando, a perna meio torta, olhando assim de lado para ver se ainda tinha alguém por perto para acudir.

Foi um colapso pessoal. Voltei para o Rio de Janeiro, fui a vários médicos, arranjei um emprego, fiz novos amigos. Tudo isso enquanto enrolava negociava com o pessoal da editora por um pouco mais de prazo, porque eu não conseguia ter cabeça para terminar o trabalho.

Outros trabalhos vieram, outras coisas vieram. Quase dois anos se passaram e eu estava agora trabalhando dentro da Intrínseca. Estando na editora, eu não fazia mais cópi, fazia o pós-cópi: minha função era pegar o trabalho que o cópi tinha feito no conforto de seu lar e ler tudo de novo, verificando todas as mudanças propostas e fazendo minhas próprias mudanças.

Foi quando tive a oportunidade de trabalhar no terceiro e último livro dessa mesma série, Sonhos com deuses e monstros. Devo confessar que só a imagem do cabelo cor-de-rosa da autora me dava certa náusea, por me lembrar aquela época. Mas qual não foi minha surpresa ao perceber, enquanto acompanhava a tentativa de redenção do anjo Akiva, sua busca por um meio de recuperar o sonho que surgira de seu amor por Karou, que o mesmo acontecia comigo: repassando aqueles dois anos, vi tudo que eu tinha construído a partir de muitos erros e concluí, quase como se não acreditasse, que a redenção é, de fato, possível. Pode não parecer na hora, mas é. “Só sei o que se faz para recuperar a alma”, diz Karou em Sonhos com deuses. “(…) nos permitimos sonhar de novo. (…) Perdoamos.”

 

Sheila Louzada, 30 anos, é editora assistente no setor de ficção infantojuvenil da Editora Intrínseca.

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Comentários

13 Respostas para “Sobre livros e anjos

  1. Depois desse texto senti muito mais vontade de ler todos os livros, próximo da lista de desejos (com urgência). 🙂

  2. Adorei! Seu relato só me fez ter mais certeza da minha futura profissão. Sempre amei o ramo editorial.

  3. meu grande sonho é trabalhar numa editora, para poder conviver com pessoas que curtem o mesmo que eu , LIVROS

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