Estou aqui adaptando meu filho à escola nova (primeiro dia de aulas) em companhia do Erico Verissimo. Não da sua ficção, mas do próprio: leio um livro antigo, uma compilação de entrevistas concedidas pelo Erico — A liberdade de escrever, EDIPUCRS.
O banco é duro e o corredor não tem ar-condicionado (de vez em quando, alguma criança surge, rindo ou chorando, primeiro dia de escola é uma montanha-russa de emoções, mas o meu pequeno está lá dentro da sua sala e tudo anda bem). Me distraio e até choro com o Erico e a Mafalda. Tenho vontade de puxar a orelha de um ou outro jornalista chato, sorrio com o carinho que salta aos olhos na entrevista que Erico concedeu a Clarisse Lispector, e encontro até a Maria Dinorah (quando eu tinha a idade do meu filho que está nessa sala no final do corredor, Erico e Dinorah eram minhas leituras preferidas). Os anos passaram, tanta coisa passou junto com eles, mas Erico segue na minha vida — O tempo e o vento mora no meu quarto, à parte dos outros volumes da casa.
E que grande figura era o Erico! A sua simplicidade faz falta às gentes de hoje, mesmo às gentes das letras, que costumam ser do tipo discreto. Quando um jornalista chato da Veja afirma que Erico é “o único grande romancista gaúcho da atualidade” (o ano era 1971, e eu, ainda um sonho da minha mãe), Erico ri e responde: “Não repita que sou o único grande escritor gaúcho da atualidade. Reivindico para mim o título de melhor romancista desta minha rua com nome de poeta, Felipe de Oliveira. Assim mesmo porque meu filho Luis Fernando ainda não se decidiu a escrever romance.”
Sábio homem, proféticas palavras. Figura simples, seu gênio não precisava de firulas. Precisava, isso sim, da dona Mafalda — outra grande criatura. (Um dia, anos atrás, depois de ler meu romance A casas das sete mulheres, com a intermediação do seu neto Pedro, dona Mafalda me ligou, convidando-me para ir tomar um uísque no final da tarde. Eu fui e levei o meu filho mais velho, João, àquela altura um guri de um ano e meio. Ele se refestelou no colo daquela dama incrível de olhos de um azul absoluto, enquanto eu ficava lá com jeito de boba, e dona Mafalda tomava o seu uísque, que eu neguei porque sou fraca para destilados, e acho que ela não me levou mais a sério depois disso…)
E assim, de pérola em pérola, de simplicidade em simplicidade, a tarde passa e chego a uma entrevista de 1972 (Erico sofrera, havia algum tempo, um enfarte, e tomava sérios cuidados com a saúde). Dessa vez, quem pergunta é Jorge Andrade, e ele escreveu:
“Quando pedi à dona Mafalda que me falasse sobre o marido, respondeu firme:
— Erico se conhece bem e é seu próprio dono. Ele que fale.
Mas um de seus olhos está sempre, disfarçadamente, observando, perscrutando o rosto de Erico. Se ele leva a mão ao peito, ela logo pergunta:
— Que foi?
— Nada, Mafalda. Não posso me coçar?”
Dona Malfada, segundo Andrade, era uma espécie de Penélope, lutando contra o tempo com as suas agulhas de tricô, corajosa como as personagens que o próprio Erico espalhou pelos seus romances.
E assim o primeiro dia de aulas acaba e o sino toca. Lá vem meu filho pelo corredor, todo contente. Eu também estou feliz, com os ecos de Erico e Malfada na minha alma.
Definitivamente, meu escritor brasileiro favorito. Belo texto!
Um grande homem. Inspirador! 😉
O texto excelente… Leticia Wierzchowski encanta com sua leveza ao dizer deste autor fenomenal 🙂