Das navegações

Por Leticia Wierzchowski

13 / fevereiro / 2015

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Minhas leituras nestas férias foram de Cortázar a Patrick Modiano, passando por Paul Auster, Joyce Carol Oates, Pamuk e Murakami. De relatos autobiográficos (A história de uma viúva, J.C. Oates, e Diário de Inverno, Paul Auster) a compilações de aulas de literatura e ensaios (Classes de literatura Bekerley, 1980, Cortázar, La maleta de mi padre, Orhan Pamuk).  Li vários (e belos) romances de Modiano e reli um livro que adoro — e que me motivou, recentemente, a amarrar os cadarços e correr por aí, Do que eu falo quando eu falo de corrida, Haruki Murakami.

Findos os livros, fiquei pensando nos autores, nas vidas por trás daquelas páginas. Joyce Carol Oates perdeu o marido em 2008 e mergulhou num turbilhão de tristeza, passando vários meses numa depressão e confusão mental tamanhas que ela se viu migrando de médico para médico, acumulando receitas de antidepressivos e remédios para dormir, enchendo seus armários e a sua boca de pílulas tão diversas que quase a levaram à loucura. Pobre Oates, indicada ao Nobel, entupida de ansiolíticos e chorando no chão da sala porque o seu velho gato Raynard não queria mais saber dela.

Paul Auster, alguns dias após o inesperado falecimento de sua mãe, aos setenta e sete anos, teve uma crise de pânico e terminou caído no chão da própria cozinha, urrando de desespero e acreditando na morte iminente.

Modiano contou que seu pai, após ter abandonado a sua mãe, renegara-o a ponto de, certa vez, entregá-lo à polícia depois de um bate-boca na porta do prédio onde, por desventura, ambos moravam em apartamentos distintos. Este pai morreu solitário num hospital parisiense, e Modiano foi visitá-lo; mas, num lance kafkiano, perdeu-se pelos labirínticos prédios e corredores do complexo hospitalar e desistiu, lá pelas tantas, de se despedir daquele homem que deixara, pouco a pouco, de ter importância em sua vida.

Murakami endividou-se até as orelhas aos vinte e poucos para abrir uma pequena casa de jazz em Tóquio e durante dez anos labutou até o alvorecer, atendendo clientes no balcão, lavando o chão e limpando mesas, e escrevendo seu primeiro romance enquanto o dia amanhecia lá fora. Esta mesma perseverança ele aplicou em todas as facetas da sua vida, transformando fracassos em vitórias, como romancista e maratonista.

Cortázar fez e aconteceu no seu tempo, vivendo uma vida de poucos recursos em Paris, mas teve um final tristonho: após a morte da sua segunda esposa, entrou em severa depressão, trancafiado no seu pequeno apartamento, morrendo alguns anos depois. Oates, Auster, Modiano, Cortázar, Murakami — grandes nomes da literatura internacional, criaturas de carne e osso, falíveis, angustiadas, corajosas, aventureiras, apaixonadas, tenazes, desesperadas.

Murakami, corredor de longas distâncias, um atleta aplicadíssimo que jamais desistiu de uma maratona, já escolheu o seu epitáfio, algo assim: “Pelo menos ele nunca caminhou“. Joyce Carol Oates, sentada num palco antes de dar uma palestra para uma plateia lotada, entupida de remédios até a alma e tentando concatenar as próprias ideias, pensou consigo mesma: Se eu conseguir enfrentar as próximas duas horas, acho que sobreviverei. Enfrentou e foi aplaudida de pé. Ao final, trêmula e feliz, o que lhe ocorreu foi: Talvez a vida seja navegável.  Por trás dos livros, histórias de vidas tão semelhantes às de todos nós. Tormentas nos pegam de surpresa. Naufrágios nos assombram. Quilômetros a vencer nos esmagam. Seguimos em frente. Ou não… A decisão quase sempre é nossa.

Na fotografia, Joyce Carol Oates, com seu ar de antiga dama inglesa.

 

Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre e estreou na literatura aos 26 anos. Já publicou 11 romances e novelas e uma antologia de crônicas, além de cinco livros infantis e infantojuvenis. É autora de SalNavegue a lágrima e de A casa das sete mulheres, história que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo e exibida em 30 países.
Leticia escreve às sextas.

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