MÃE, FUGI COM O CIRCO

Por Clarice Freire

18 / dezembro / 2014

Coluna 17 - MÃE, FUGI COM O CIRCO 2

Sempre tive vontade de voar. Ter vontade é eufemismo. Eu morro de vontade de voar. Todos os dias de manhã, meio-dia, seis da tarde, essa vontade vira um desejo devastador. Vira uma obsessão. Na verdade eu já negociaria que o meu carro, o meu ônibus, ou eu mesma voasse e passasse por cima daquele mar de carros ranzinzas que se emparelham no trânsito da minha querida cidade.

Confesso que também penso na saudade de quem está longe, nem só de engarrafamento vive a vontade de voar do homem, é verdade.

Ah, se eu voasse. Quando era pequena, só queria mesmo sobrevoar a Serra das Russas, a caminho de Gravatá, minha cidade do interior, acompanhando o carro dos meus pais, porque, claro, desde pequena conheço bem meu senso de orientação e sabia do risco de me perder no caminho. Teria que seguir o carro de cima quando fosse pra casa da minha vó voando. (Imaginei agora a minha avó voando, mas eu estava falando de mim.) Senão ia bater na Rússia, não nas Russas e, pelo meu senso de orientação, não saberia voltar, nem sabia falar russo. Vamos evitar problemas então.

Sempre quis dançar bem, mas o talento também não me ajudava nesse quesito. Observava as bailarinas que têm graça, beleza, flexibilidade, desenvoltura, só a Claricinha que não tem. E quando as minhas amigas dançavam fazendo piruetas na ginástica eu aplaudia entusiasmada (ainda aplaudo) de admiração.

Coragem. Sempre quis ter litros de coragem. Inclusive esse era meu apelido na fisioterapia (sim, meu joelho é uma droga), na natação (em dias de chuva, eu tinha esperança de que meu pai me liberasse de acordar tão cedo. Ele perguntava se a piscina estaria molhada demais pra mim, e lá ia eu nadar na chuva. E não podia nem ir voando.) Coragem era meu apelido e hoje algo me diz que conheci muito cedo a ironia.

Nessas horas eu queria fazer a piscina desaparecer. Ou meu pai (eu sei que você vai ler isso, mas perdoe o rancor infantil de alguém que APENAS não queria nadar na chuva).
Me admiro com os domadores, atiradores de facas. Hoje eu admiro a coragem de quem sabe domar um leão por dia. Nunca controlei meus peixinhos suicidas, mas aprendi a domar leão também, é verdade.

Um pouco de magia cai bem no dia. Coçar o nariz e arrumar a bagunça, qualquer tipo de bagunça, qualquer uma mesmo; poção do amor (ui!), voar (eu disse que era obsessiva), invisibilidade. Eu queria ser mágica.

Nem sempre é fácil existir, vale a pena se você consegue fazer alguém rir. Nessa hora relativiza-se tempo e espaço.

Eu queria ser palhaço.

Querendo tanto, fiquei sem saída.

Essa é minha carta de despedida,

Da vida sem graça. Vou sair, cantar, lançar um disco.

Eu vou mesmo e arrisco.

 

Mãe, adeus,

Fugi com o circo.

 

Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

2 Respostas para “MÃE, FUGI COM O CIRCO

  1. Vc é a melhor… Admiro o seu trabalho, as suas escritas e o que seria de mim se não pudesse sonhar e com vc isso é possível… Obrigada Clarice…

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