Adriana Falcão

What a wonderful world

6 / novembro / 2014

wonderful-world

Isso não é um texto político.

Nem poema saudosista.

Nem manifesto alarmista.

Não é lamento, nem julgamento.

Nem tem finalidade explícita.

É apenas uma história, um simples relato, uma lembrança.

O ano era 1976. Sábado à noite. Jovens discutiam política num boteco. Muitos citavam Marx. Do outro lado da rua acontecia uma festa, um tanto hippie, num velho casarão de Olinda.

Optei pela festa.

Raul Seixas cantava na vitrola. Antes de acontecer o que aconteceu, fiquei a observar o mundo, através daquela parte que acontecia ali, entre as paredes do velho casarão. O desejo estava no ar. Muita fumaça. As pessoas, um tanto loucas, dançavam. Havia gente com flores nos cabelos. Havia gente com dizeres libertários nas camisas. Uma moça bonita acreditava no que o rapaz dizia ao seu ouvido. Meu amigo gay e seu namorado trocavam juras de amor eterno. Um casal tomava um só drink, com dois canudos, ambos alheios ao entorno. A concentração de beijos por metro quadrado só perdia para a concentração de gargalhadas. Brincava-se de tudo. Muitos estavam bêbados, mas todos estavam lúcidos. Éramos, todos, da oposição. Contra a corrupção, contra a desigualdade social, contra a tortura, contra a violência. Todos éramos a favor dos direitos humanos, da verdade, da descriminalização do aborto e da maconha, e isso em nada tinha a ver com partidos políticos, mas com nossos anseios. Vivíamos numa ditadura. A anistia ainda não havia acontecido, nem as eleições diretas para presidente, nem qualquer outro sinal de abertura, porém nós estávamos abertos. A palavra “esperança” não houvera sido banalizada por slogans, e era o que nos movia.

Então, aconteceu.

Meu olhar cruzou com o dele e ambos nos estranhamos. Ele tinha um cabelo liso e longo. Me tirou para dançar. Chamava-se Pedro e me fazia girar no salão. Entramos numa inexplicável sintonia. Era como se só nós dois tivéssemos consciência de que aquele lugar, aquele dia e aquele momento iam morrer afogados no rio que conduz o tempo. E que o futuro, lá longe, jamais iria compreender a doidice que acontecia à nossa volta. Tocou “What a Wonderful World”. Nos beijamos.

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