O parto de um livro na lua

Por Clarice Freire

7 / agosto / 2014

Coluna 6 - O parto do livro na lua (2)

– Oi, eu queria falar com Livia.

– Qual é o seu nome?

– Clarice.

A moça simpática da recepção, que lembra bastante a minha mãe, por sinal, dos cachos dos cabelos até o olhão azul-esverdeado, abre um sorriso de reconhecimento. Retribuo um tanto nervosa. Que lugar interessante. Ela deita o rosto no telefone.

– Livia? A autora chegou.

Na mesma hora, sobressaltada, eu me viro para trás imaginando qual seria a autora que tinha acabado de chegar e já muito chateada porque provavelmente eu não teria um exemplar do seu livro para pedir um autógrafo. Que vergonha.

Ninguém atrás de mim.

A esta altura, já desconfiava de duas coisas distintas:

1)      Eu estava ficando mesmo esquizofrênica e ouvia uma voz interior chamando uma autora por conta da minha vontade inconsciente de dar de cara com Adriana Falcão, por exemplo.

2)      A moça simpática da recepção via coisas. Autoras mortas que passeavam despretensiosamente durante a tarde pela Intrínseca, talvez? A moça tinha enorme sensibilidade. Escrevia ela mesma as memórias póstumas que ouvia. Discretamente eu já tinha dado um passo para trás. Sou muito covarde para essas coisas.

Os olhos azuis da moça continuam me encarando, sorridentes. Meu sorriso já está vacilante, claro.

– Eu já avisei que você chegou. É só aguardar.

Céus. A autora sou eu. O susto foi muito maior do que se ela tivesse dito “Clarice, querida, você poderia, por favor, se afastar? Porque a autora-do-além está tentando me dizer alguma coisa que me soa como potencial de Nobel da Literatura e você está atrapalhando a frequência com seus pensamentos obscuros”.

Autora. Começo a rir sozinha. Agora é a moça quem deve estar pensando que eu tenho problemas, ou tendo certeza. Foi essa a minha primeira surpresa ao colocar os pés na editora e ali conseguir imaginar que todas aquelas coisas que escrevia e jogava no lixo, desenhava por pura necessidade, por não querer que os meus pensamentos me matassem por sufocamento, iam virar um livro. Mas é possível imprimir um sonho? Eu achava que não.

Pulemos um pouco mais o espaço do tempo.

Então me via sentada em uma mesa de madeira velha que fica na varanda da minha casa, cercada por todos os livros que você possa imaginar. Muitos papéis, anotações, uns bibelôs de viagem, entre eles um camelo que eu mesma trouxe de presente do Marrocos.  Lembrei que entre as vielas intermináveis de Marrakesh, achei o camelo a cara do meu pai. O mesmo olhar. Inclusive, neste dia, um senhor de camisolão e longas barbas, aos gritos, queria me comprar por centenas de camelos (eu sou cara) e se meu amigo (que era o único homem ao meu lado, portanto, automaticamente meu dono) tivesse topado, nunca mais o meu querido pai teria me visto novamente. Voltei para a mesa e a encarar os livros. Eles me encararam de volta cheios de julgamento e conhecimento superiormente publicados, me mostrando que não era assim tão fácil trazer um exemplar de sua espécie ao mundo. E o parto não era normal.

Ao meu lado, uns muitos lápis de cor e canetas de tinta. Papéis em branco, meus Moleskines e dentro de mim aquele vulcão em ebulição conhecido, tremeluzindo escaldante. Ele só explode pelos dedos. Agarrei-me às canetas para deixá-lo queimar os papéis como sempre e… nada. Meu pensamento só vagava para a ideia: isso vai virar livro. O vulcão gelava e estremecia nervoso. Silêncio. Ele não estava habituado à tamanha gravidade. Tive de enfrentar uns dias gélidos sem muito o que fazer. Estava completamente refém.

Até que uma velha amiga resolveu me visitar novamente, com ela tudo fluía, tudo era encanto de novo. Ela, como eu, precisa desesperadamente de umas horas sozinha e do silêncio, tirando os grilos de trilha sonora. A Madrugada voltou a ser minha companheira e, nela, as coisas que haviam congelado por dentro daquele meu vulcão da alma derreteram e voltaram a flutuar sem gravidade pelo quarto, pela janela, pelas conversas, pelos objetos, pelos reencontros, pelas perdas duríssimas. A poesia mora no mundo. O mundo mora em mim e eu nele. Ao redor do mundo a lua brinca de desparecer e voltar, gravitantemente despreocupada. Para ela pouco importa o mundo e suas insanidades. Ela flutua desconcertantemente bonita. Indiferente. Olhando para ela, voltei às minhas canetas, aos meus mundos, aos personagens que só existem na inexistência, às belezas escondidas onde ninguém olha. O pó – de lua – também fica debaixo do tapete. Voltei para casa.

Minha gestação foi assim. Amanhecia, eu batia o tapete pela janela. Com a luz do sol era mais fácil transformar aqueles devaneios madrugueiros em forma, cor, palavras e mais palavras. Aos poucos o camelo e os livros ao redor da mesa velha já não me olhavam severos. Mostrava a eles meus rabiscos: “olha só, gostaram? Faz sentido?” e eram sempre sinceros. Criamos tudo juntos.  Nunca tive a intenção de escrever, já disse. Foi caso de vida ou morte. E não é que isso deu vida à tal autora que a moça dos olhos azuis da editora foi a primeira a reconhecer? Hoje existe um livro que, por sua vez, existe para ser uma poesia desenhada que diminui a gravidade das coisas. Um livro. Nunca erro sobre as pessoas. É mesmo muito sensível e vê o que nem eu mesma via, aquela recepcionista encantadora. Ela viu mesmo uma autora invisível. Agora talvez, quem sabe, vocês já possam ver algo dela também?

Muito prazer.

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Clarice Freire nasceu no Recife, em 1988, e desde muito cedo aprendeu a usar as palavras para acalmar suas inquietações. Cresceu admirando os desenhos em lápis de cor da mãe, Lúcia, e os versos do pai, Wilson. Uma noite, ouviu falar que a lua era bela porque, mesmo sendo só areia, deixava refletir a luz de outro, e por isso as noites não são escuras. Daí veio a inspiração para o nome de sua página no Facebook, Pó de Lua, criada em 2011.
Clarice escreve, quinzenalmente, às quintas.

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Comentários

5 Respostas para “O parto de um livro na lua

  1. Autora sim! E das boas, raras, como a muito tempo não via surgir. Essa primeira edição já deve estar esgotada…o mundo inteiro está muito necessitado de “pó de Lua” exatamente para que ele cumpra sua função de “tirar a gravidade das coisas”…já começou a compor suas poesias desenhadas em espanhol? ingles? Francês ? Alemão? Pois então comece logo, senão será plagiada na rapidez da internet! Mesmo que eu não consiga essa primeira edição, nao ficarei sem esse livro!

  2. Sou completamente apaixonada pelas suas crônicas, leio todas!

  3. Adorei! Estou muito ansiosa pera que o livro chegue em Minas! Parabéns, você escreve muito bem; estou me inspirando em você, pois também tenho como necessidade para minha sanidade escrever! Mais uma vez parabéns e muito sucesso!!!!

  4. Ô, Clarice! Uma delícia ler algo mais extenso de sua autoria.
    Você tem uma beleza de narrativa e, se não tivesse visto em cima da hora, hoje teria enfrentado uma viagem de pouco mais de 3h e estaria em Recife te abraçando e, talvez relutantemente, te entregando MEU exemplar do SEU livro, mas quem sabe você venha à João Pessoa e eu possa fazer isso? Tudo é possível. E como o Marco enfatizou acima: Autora sim! Das grandes!

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