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A inflamada Rachel Kushner

11 / abril / 2014

 

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Por João Lourenço*

O segundo livro de Rachel Kushner, Os lança-chamas, apareceu nas principais listas internacionais de mais vendidos e de melhores do ano de 2013. A obra foi finalista dos prêmios mais importantes do circuito literário, como o National Book Award. Rachel é um dos raros casos em que a vida pessoal do autor é tão interessante quanto o mundo dos personagens que inventa.

Com pais que viveram o auge da geração beatnik, Rachel Kushner cresceu em um ambiente não muito convencional. Desde pequena, chama o pai e a mãe pelo primeiro nome. Ela e o irmão mais velho, Jake, tiveram uma infância bastante boêmia e despojada para os padrões da época. Aos 5 anos, Rachel já trabalhava em uma livraria coletiva especializada em literatura lésbica e feminista. A função era arrumar os livros em ordem alfabética nas prateleiras. Nesse período, ela escreveu o livreto The Richest Cat in Herley, uma pequena fábula sobre um gato sabichão que tirava proveito de gatinhos de rua.

Rachel cresceu, pintou os cabelos de vermelho, montou em uma motocicleta e pegou a estrada rumo a Berkeley, onde estudou. Após um acidente em uma rodovia mexicana, parou de fazer rachas com os amigos. Até hoje, participa de competições de esqui com a família. Toda essa inquietação e liberdade estão presentes em sua literatura. E, de fato, o universo particular da escritora assusta e incomoda muita gente.

Em geral, o título de “grande romance americano” é destinado a obras de homens politicamente corretos, desses que gostam de observar pássaros. Os protagonistas dos romances dessa categoria sagrada — adivinhem! — também são homens. Pense em Jay Gatsby e Huckleberry Finn. Deliberadamente ou não, em Os lança-chamas, Rachel quebrou esse molde imaculado. Em entrevista à revista Tin House, ela disse que a literatura atual deve ser mais agressiva e ousada, que jovens escritores precisam romper barreiras antigas e tentar seguir o caminho de autores radicais como Woolf, Faulkner e Joyce.

Quando estudou ficção na Universidade de Columbia, Rachel teve que escrever muitos contos — o processo de formação de qualquer jovem escritor —, mas confessa nunca ter gostado da caça obsessiva pela frase perfeita. Antes de ser escritora em tempo integral, assinou críticas de arte contemporânea para diversas revistas especializadas e também flertou com a poesia. Hoje, é dona de uma prosa fluida e vívida. E um de seus maiores méritos é a capacidade de explorar lugares pouco visitados. É como se ela não tivesse medo de se afogar.

As inspirações da escritora passam por filmes de John Cassavetes, pela literatura de Don Delillo e por conversas com artistas plásticos, como Richard Prince. Ela sempre começa seus livros com uma imagem, com uma cena sonhada ou vivenciada. Seu primeiro livro, Telex from Cuba, surgiu após uma viagem para Havana. Já em Os lança-chamas, ela estava obcecada por fotografias da Nova York da década de 1970, período de caos criativo e pós-revolução sexual. Rachel tinha em mente os saqueadores no Bronx durante o blecaute de 1977 e a cena dos artistas underground que ocupavam os grandes galpões no Soho. A voz da escritora Joan Didion também ressoou nas páginas de Rachel. “Costuma-se dizer que Nova York é uma cidade apenas para os muito ricos e os muito pobres. Porém, esquecem de acrescentar que Nova York, para aqueles que vieram de outro lugar, também é uma cidade apenas para os muito jovens.”

Em Os lança-chamas, pegamos carona na garupa de Reno, jovem motociclista de 23 anos que chega a Nova York em busca de estabelecer conexões e explorar a vida de artista. Ela pretende trabalhar com filmes e fotografia, mas não conhece ninguém, não sabe aonde ir. Entre festas em galerias no Soho, playground dos hipsters daquela geração, Reno passa pela fase da educação sentimental. Apesar de certa inocência juvenil, percebe que está cercada de pessoas que estão longe de sua verdadeira identidade. Inebriada pela fumaça de uma Manhattan em constante movimento, Reno se junta ao artista Sandro Valero, herdeiro de uma família tradicional italiana, e os dois vão parar em Roma. O ano é 1977 e a cidade é palco de inúmeras manifestações sociais e culturais. Repleto de diálogos ágeis, observações afiadas e uma série de personagens incrivelmente desenhados, o segundo romance de Rachel Kushner explora o potencial dos encontros casuais e das decisões inconsequentes que são tomadas na juventude. Na hora de criar sua heroína, Rachel imaginou uma voz que soasse como pensamento, não como língua falada. O intuito era que fosse especial, mas não muito particular. A autora mescla emoções, sagacidade, filosofia e cenas do cotidiano.

O enredo é bastante simples. No entanto, a mão de Rachel foi feita para os detalhes. Ela mantém a fluidez quando alterna as vozes dos personagens de acordo com o cenário que eles percorrem — ora em festas, ora em cenas de terror na Itália. Não é apenas um recurso linguístico para mostrar que é boa escritora, é uma questão de tom. Os personagens crescem e sofrem, logo, suas vozes precisam acompanhar o ritmo dessas mudanças. É uma profusão de sons harmônicos. A energia daquelas pessoas é tão contagiante que o leitor tem a sensação de pertencer àqueles protestos e àquelas festas do fim dos anos 1970. Os personagens não têm medo de ir até o fundo do poço, são conscientes de suas ações e, mesmo quando tudo parece desmoronar, não são vitimizados.

Rachel Kushner poderia ser mais uma escritora americana que aceitou seguir as regras do jogo da literatura, mas, assim como Ann Patchett e Jennifer Egan, não abaixa a cabeça para os egos inflados dos colegas de profissão. Esses clubes privados não a interessam. Afinal, por que lutar para entrar em um lugar onde os mandamentos são sagrados e claramente estão contra você? Rachel prova que a boa literatura é aquela em que as portas estão sempre abertas, aquela que não exclui. Para ela, tudo que se preserva escrito, seja por homem ou mulher, tem a possibilidade um dia tornar-se realidade.

*João Lourenço é jornalista, nascido no Paraná e criado em São Paulo. Passou pela redação da FFW MAG!, colaborou com a Harper’s Bazaar e com a ABD Conceitual, entre outras publicações estrangeiras de moda e design. Foi assistente de Stephen Todd, do Times e do Guardian. Já entrevistou todos os escritores que queria, menos a musa de todas as musas: Joan Didion. Ele também tentou estudar Literatura Francesa pelo simples prazer de ler e acreditar que iria passar todas as aulas discutindo Balzac. Sem data para retornar, agora está na Califórnia. Pretende estudar escrita criativa em Stanford. No tempo livre, troca figurinhas com seus vizinhos celebridades, Adam Johnson e Michael Chabon. E, assim como Lena Dunham, ele jura que é a voz dessa geração.

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