[a primeira vez a gente sempre escreve]

Por Pedro Gabriel

29 / outubro / 2013

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Muitos me perguntam como nasceu o primeiro guardanapo. Outros querem saber o que estava escrito naquele primogênito pedacinho de papel descartável. Confesso que a minha memória anda um pouco confusa, afinal hoje já são mais de mil guardanapos. Escrever este texto me fez voltar no tempo, mergulhar nas lembranças e nas lambanças. Dou-me conta de que a página está chegando ao seu primeiro ano de vida on-line. Reforço vida on-line porque tenho palavras engavetadas desde sempre e um ano na internet ecoa com a intensidade de dez fora dela.

Ontem, abri a minha inseparável maleta amadeirada e revi, um por um, todos os guardanapos procurando aquele que me deu o impulso de começar e continuar a escrever. Sim, até hoje, quando me sinto inseguro, releio aquelas poucas palavras e elas me ajudam a entender um pouco o ciclo das coisas. São elas: Primeiro, o encanto. Depois, o desencanto. Por fim, cada um pro seu canto. Apesar de sugerir um fim, esse verso sempre ressoa em mim como uma melodia que me faz voltar ao primeiro encantamento. Sempre.

Lembrei o mês exato em que ele nasceu. O dia, não. Mas era outubro do ano passado. Eu trabalhava na Barra da Tijuca. Minto. Um pouco depois. Trabalhava no inferno. Minto. Um tiquinho antes. Mas era sexta-feira. Isso é verdade. O trânsito era caótico (continua sendo!). A verdade prossegue. Ah, e pra melhorar: chovia torrencialmente. Assim que desci do ônibus, após quase quatro horas de viagem, parei no bar e pedi um chope para me acalmar.

Observo:

Do lado de dentro, o cheiro de fritura, a fartura exposta: carne assada, pernil, rosbife… A TV sintonizada em alguma programação inútil. O palpite do jogo de futebol. Quem ganhou? Quem perdeu? Às vezes, tudo parece empate. Na vitrine, o olho de sogra troca olhares com os casadinhos. Os brigadeiros enfileirados, como se fossem bater continência para um general inexistente, voam para o céu da boca do freguês mais corpulento (não sou eu!). Sentido! A guerra dos doces só termina na última bomba de chocolate (e é minha! Pra viagem, por favor!).

Do lado de fora, amigos de infância parecem rejuvenescer a cada gargalhada entonada entre um gole e outro entornado. Outra rodada, garçom! Senhores viram a noite jogando baralho. O barulho dos cascos vazios, visivelmente desconfortáveis na montanha de engradados, não parece incomodar a sobriedade dos passantes. Que engraçado! Um bêbado divide a calçada consigo mesmo. Direita, esquerda, opa!, um tropeço… Que dó, com tanta boca pra beijar, quase beijou o chão.

Analiso:

Foi no meio desse caos urbano e boêmio que nasceu este guardanapo. Não foi o primeiro que postei nas redes sociais, mas foi o primeiro que me fez enxergar que mais pessoas poderiam valorizar a poesia do descartável. O traço ainda era sem personalidade definida. As letras ainda eram mais tímidas do que eu e pareciam querer se encolher, sumir naquele pedacinho de papel.

Concluo:

Entrei para tomar um chope. Saí com uma ressaca de poesia.

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Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e autor de Eu me chamo Antônio Segundo – Eu me chamo Antônio e Ilustre Poesia.

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Comentários

17 Respostas para “[a primeira vez a gente sempre escreve]

  1. O texto deixou um gostinho de quero mais…
    “Apesar de sugerir um fim, esse verso sempre ressoa em mim como uma melodia que me faz voltar ao primeiro encantamento. Sempre.”

  2. A cada guardanapo que leio, a cada texto ou frase, fico mais apaixonada por você. Talvez seja infantilidade se apaixonar por um personagem, mas é tão verdadeiro, tão simples e único. A única coisa a se dizer é parabéns pela história contada, pelo livro e pelo que virá.

  3. Eu acho q suas histórias dariam um filme.
    Hummm… Acho que tive uma boa ideia!!!

  4. Vc ama…. vc…. chora… vc. é feliz…. claro pra registrar todos os lindos momentos em frases, é claro vc ama incondicionalmente abç

  5. Como já disseram mais acima, “O texto deixou um gostinho de quero mais”. Se em guardanapos já é bonito imagina em livro :))

  6. Poeta incrível. Sinto-me feliz de acompanhar o nascimento e o crescimento de sua vida poética! Viva Antônio! Quer dizer que novembro é o mês de seu aniversário… Parabéns!

  7. Adorei esse transbordamento de alma q, dos guardanapos, vem encontrar a alma da gente…

  8. Você sempre transformando simples fatos do cotidiano em coisas grandiosas. Transformando em poesia, tudo o que (hoje) é desprezível “culturalmente”. É na simplicidade que nasce tudo, e seus guardanapos são a prova disso.

  9. Adorei ler o seu texto, aliás, encontrei um colega que também escreve em guardanapos. Quantas ideias tive em baladas, restaurantes, bares, tomando café sozinha, que foram registradas em guardanapos e depois em minha teste, que não é por acaso que tem o título “Do pensar ao escrever: um prazer”. Boas escritas seja em guardanapos e em seus livros!

  10. “Entrei para tomar um chope. Saí com uma ressaca de poesia.”

    Que bom! Hoje nos da a oportunidade de sua ressaca!

  11. És tão profundo. Tão poucas palavras para dizer tanto. Contiua força.

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